terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Aos leitores, com carinho

Eu vi esses dias na TV um programa sobre um desastre aéreo que me fez pensar sobre os desejos de ano novo.
Um avião lotado havia se espatifado em meio à floresta amazônica, matando quase todos que estavam a bordo. Perguntado sobre o ocorrido, um dos sobreviventes explicou que era como se Deus houvesse lhe dado uma nova vida.
Engraçado que nessa época é isso que todos procuram. “Ano novo, vida nova”.
E é por isso mesmo que eu desejo uma tragédia a todos os leitores, metaforicamente é claro. Quer dizer, cada um imagina seu pequeno desastre nos últimos minutos de 2008. Assim talvez entremos no ano novo realmente renovados.
Até porque, como diz um comercial de TV, não adianta fazer lista de boas intenções pra depois esquecer na gaveta, nem imaginar que por decreto em Janeiro tudo vai se realizar. As oportunidades de mudança existem sempre. O que muda são as pessoas e a disposição delas para aproveitar essas chances.
Feliz ano novo e muito obrigado aos leitores, poucos mas fiéis, que nos acompanharam durante o ano todo.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Natal em Família

Depois de muito pensar, decidiu fazer vinagrete. Era mesmo uma pessoa desprezível. Cada um levava um prato para a ceia, e ele decidiu fazer o prato mais fácil e mais sem graça. Coisa de gente desprezível. Mesmo assim, estava hoje uma pessoa melhor.
Pôs a mesa e esperou os convidados. Meia hora mais tarde, chegavam os outros três integrantes do jantar: uma mulher, o marido e a filha.
A filha era ainda pequena, 6 anos. O pai e a mãe, mais velhos, haviam se casado há pouco tempo e já desprezavam o anfitrião. Esse nervosismo de ambos devia-se em grande parte ao fato de a mulher ter sido abandonada pelo antigo marido, em plena gravidez da menina. Antigo marido esse que agora oferecia o jantar de natal.
Era o primeiro natal que aceitavam o convite do anfitrião. E não é nem necessário dizer que a noite transcorreu aos trancos e barrancos. O jantar, muito tenso e desconfortável, como é muito comum nos jantares em família.
Apesar de toda gritaria, e do nervosismo descontado no frango que substituía o peru, o desprezível estava alegre. Seus olhar não desviava da menina que tinha herdado seus olhos.Esquecia agora, do ódio que nutria por tudo que envolvia o natal, ódio das frutas importadas e dos programas melosos na televisão. Quer dizer, continuava odiando esses detalhes, mas pensava em como o natal era uma data única.
Somente naquela época podia oferecer sua companhia. E as pessoas se esforçavam para tolerar tudo aquilo que o tornava tão insuportável. Seria muito ingenuidade o rapaz querer isso para todo o ano. Aquela data era única. Diferente dos jantares de páscoa, do dia da bandeira e de carnaval.

Feliz Natal a todos os leitores!

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

queime depois de ler

Na primeira vez que escutei ou li - não lembro - o nome do filme, pensei na hora no desenho do Inspetor Bugiganga que assistia quando pequeno. Quem assistia deve lembrar que as mensagens do 'chefe' ao inspetor eram queimadas ou destruídas de outra forma.

Ao assitir o filme percebi que os irmãos Coen são tão versáteis quanto o personagem do desenho animado. Dos Coen, assiti apenas aos premiados Fargo e Onde os fracos não têm vez antes de Queime depois de ler - que também deve ganhar alguns prêmios por aí - e já gostava deles pelos dois primeiros filmes, mas o último consegue uma transformação, de um início morno com pessoas saindo do cinema até um final maravilhoso com pessoas reclamando do filme.


*aqui uma pausa para falar sobre essas pessoas*

Antes de ir ao cinema, uma amiga que almoçou em minha casa disse que tinha visto o filme, gostado bastante, mas escutou as outras pessoas do cinema falando muito mal. Quando fui ver não deu outra, em minha fileira, eu, meu amigo, e uma senhora ríamos enquanto as pessoas atrás batiam um papo como se estivessem em um clube. É estranha essa disparidade de reação do público.

*fim da pausa, na verdade desabafo ou algo do tipo*


Enfim, quem for ao cinema verá atuações muito boa de John Malkovich, George Clooney, Brad Pitt - que atualmente é o cara que melhor escolhe roteiros para trabalhar - e até Frances McDormand, a insuportável mulher que fazia aquela funcionária de banco em Família Buscapé. Vá assistir e se não gostar, reclame depois de ver.


x-x-x-x


O víciocrônico andou meio parado devido ao fim de semestre da faculdade e os blogueiros estão cobrando uns aos outros para voltarmos a escrever com frequência, e iremos.Eu estou em recesso e volto com tudo no dia 5 de janeiro.Desejo já, para você, um feliz natal e um excelente 2009.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Aniversariantes da semana

Nas últimas semanas comemorou-se diversos aniversários. Os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O 20° aniversário do assassinato de Chico Mendes. Os 40 do AI – 5. O do meu primo e de amigos meus.

O interessante é que tais aniversários tão importantes foram comemorados em meio a curiosos acontecimentos. Um jornalista iraquiano atirou as próprias botas em Bush, imediatamente foi preso e estranhamente espancado na prisão, estranhamente porque não são numerosos os dispostos a comprar uma briga pelo presidente americano (índice de reprovação recorde – 80%), já a vender, é outra história.

Mas, de acordo com o sexagenário do ano, Todo o homem tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios, independentemente de fronteiras.(Artigo 19) Logo, a prisão do jornalista violou claramente tal Declaração.

A morte de Chico Mendes vinte anos atrás também é relembrada hoje numa atmosfera irônica. A devastação da floresta amazônica continua cinicamente. A reserva indígena Raposa-Serra do Sol ameaçada. Aliás, Artigo 17: I) Todo o homem tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros. II) Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade. Meio ambíguo, visto que em alguns casos garantir a propriedade para o todo significa privar dela toda uma parte. Já o segundo item no que toca a reserva indígena...

A cereja (vermelha, de sangue) vem para enfeitar os bolos. O AI – 5 representou a mais violenta agressão aos DH no Brasil. Não bastasse alguns defenderem que a Lei de Anistia concedida após a Ditadura já tenha deferido perdão aos torturadores, é tragicômico, hoje, ver vários meios de comunicação a relembrar o Ato com olhos reprovadores quando na época vestiam as fardas.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Constrangidos

Era começo de ano quando ela, no final de uma festa, caiu embriagada no sofá. Lá estava um oportunista que pôs fim à longa fidelidade que a menina tinha por seu namorado. Como a festa era dada por um amigo em comum, não demorou para que o traído fosse avisado sobre o ocorrido.
Durante o ano inteiro existiu, então, um clima tenso quando os dois se cruzavam nos corredores. O ambiente ficou pesado para ambos. Como em uma guerra, os dois lados possuíam grupos aliados e grupos inimigos.
Logicamente, do ponto de vista masculino, o namorado saiu com a reputação mais arranhada. Sempre havia os maldosos, que, com um ou outro apelido, estavam prontos a lembrá-lo de que havia sido traído publicamente. E aquilo era uma tortura de fácil aplicação, bastava conhecer a história daquela noite. Sendo assim, os comentários constrangedores perseguiram o rapaz por muitos e muitos meses.
Os ex-namorados se falaram, enfim, na festa de formatura. Ela, direto ao assunto, explicou o que tinha acontecido. Ele foi determinado:
-Você vai precisar implorar de joelhos.
E, sem maiores problemas, a festa correu.
Quando a música já invadia o amanhecer, a menina subiu ao palco e pediu o microfone. A festa, paralisada, observou o choro e os suplícios da garota.
Ao final do discurso, ela andou devagar em direção ao rapaz, que bebia do outro lado do salão. Como se quisesse que a festa inteira observasse o reencontro, abraçou lentamente o antigo namorado. Ele beijou-a no rosto, no pescoço e no lóbulo do ouvido. Então disse:
-Agora some daqui.

sábado, 13 de dezembro de 2008

(sem título)

Boa tarde! na verdade: boa tarde.; tinha o costume de cumprimentar as pessoas na rua, não que saísse por aí distribuindo saudações, mas pelo menos olhava nos olhos das outras pessoas e dava um sorriso. O boa tarde., quando saía, era sem exclamação mesmo. Achava que o Boa tarde! soava meio falso, principalmente, quando dirigido a pessoas desconhecidas. Também porque alegria exagerada incomodava um pouco, a si mesmo, e achava que podia incomodar aos outros. Não porque os outros fossem uns invejosos, mas pessoas demasiadamente alegres lhe pareciam meio patéticas, hipócritas...Alguma coisa como Aquele que ri apenas não recebeu ainda a terrível notícia. No fundo, sabia que entre o yin yang das dicotomias que se equilibram no mundo, numa transformação heraclitiana, a tinta preta da tristeza acabava vazando um pouco sobre o branco da felicidade.
(Por que atribuir o negro à tristeza não sabia, quer dizer, imaginava. Velório e outras coisas...Quando não sabia ao certo os motivos atribuía à cultura ou idiossincrasias. Mas o negro combina mais com a tristeza mesmo, ou não?)
(esse ou não foi apenas para eximir-se da responsabilidade conferida pela afirmação o negro combina mais com a tristeza mesmo)

Continuou seu caminho até a padaria.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Enfermos

- Desculpe pelos gritos.
Foi assim que começou. Não o melhor começo, mas, enfim, foi esse aí.
Ela na cama do lado fez uma piada, alguma coisa sobre os homens serem intolerantes a dor. Eles riram, tossiram, riram e voltaram a tossir – é assim que os doentes gargalham.
Ficou estabelecido logo de cara que não falariam de suas doenças. Quer dizer, um não iria saber do que o outro sofria. E também, existem conversas mais agradáveis e mais românticas do que essa.
Outra coisa, também virou regra que não se veriam por detrás do pano. Era tudo muito platônico. E aquele pano separando os leitos servia para que um não visse as máquinas que mantinham o outro vivo, no caso de elas existirem, é claro.
O caso é que não houve no mundo namoro mais certo. Era tudo muito bonito. Aqueles braços pálidos se alisando eram motivo de conversa no hospital todo. Quantas enfermeiras não ligaram para seus namorados cobrando mais amor. E quantas não desejaram estarem também doentes.
Era tudo também um pouco triste. Enquanto um fazia seus exames, o outro tentava distraí-lo da dor. Quando a situação fazia-se mais séria, o outro não agüentava e botava o volume da TV no máximo.
Acontece que era assim mesmo. O “um” estava sempre mal, e o “outro” permanecia estável. Até que um dia o médico disse aos berros:
- Não dá mais para adiar. Você precisa dessa cirurgia pra já!
Por uma noite e um dia eles conversaram. Foi confessado que o caso de um era gravíssimo, terminal . Já o outro, não. Para ela, alguns antibióticos lhe bastariam.
Na noite seguinte, véspera de sua cirurgia, ele se desgarrou de seus aparelhos e deitou-se no leito ao lado.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

O jovem doutor

Desde os cinco, o pai sentenciava: Há de ser médico. E o melhor!
Uma vez, no volta de uma viagem, a família deparou com um acidente na estrada. Advertiram-no: Fique no carro! Foi o mesmo que empurrá-lo pra fora. Entre paramédicos luzes gemidos curiosos e sangue se aproximou de uma das vítimas em pânico e com seu olhar doce, de quem não sabia o que acontecia: tranquilizou-a. A partir de então, a vocação.

Do desejo fez-se verbo. Doutor! os pais se orgulhavam a terceiros. Do verbo fez-se imagem. No quarto do menino a cama lembrava uma maca, meio tenebroso mas ele gostava, até a lâmpada ganhou a decoração daquelas de sala de cirurgia; Na tv assistia a outros, mas gostava mesmo era dos seriados médicos. A imagem fez-se profecia. Cresceu entre bonecos e livros de biologia. Brincava, naturalmente, mas de médico, sem malícia. Da profecia fez-se obsessão.

Aos doze, perdeu o avô. Doença congênita no pâncreas, mas ainda desconhecida. Desconhecida...inquietou ainda mais o espírito médico do jovem. Congênita, hereditária. Mamãe certamente sofre ou sofrerá também da moléstia.

Uma noite, serviu um chá para a mãe com uma dose cavalar de calmantes. Esperou o sono. Embebeu uma pano com álcool e amarrou na boca da mãe. Com uma faca do churrasco fez uma abertura abaixo dos seios. A mulher sentindo a carne rasgar despertou gritando, ao tomar ar tragou o álcool do pano e desmaiou novamente. Tudo planejado. Localizou o pâncreas e extirpou-o. Colocou numa bandeja e levou o órgão ao quarto para exáminá-lo no microscópio do kit da coleção nas bancas.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Recurso

O meu mundo - ou pelo menos o meu atual mundo, praticamente limitado a duas ou três avenidas e suas proximidades - está infestado de juízes.

O que você está comendo? O que você está vestindo? O que ouve? o que vê? Com quem anda? Quem odeia?

Centenas de dedos apontando para você e dando seu veredicto.

Só faço um pergunta: por que te importa?

Na verdade faço mais uma, pra que esticar tanto o pescoço pra saber algo sobre a vida alheia? Se a curiosidade te sufoca, vá, olhe, mas cale essa boca.

Deixe essa personagem dentro do gaveta da próxima vez que sair. Todos sabem que você canta Araketu embaixo do chuveiro quando tira a camiseta daquela banda b do cenário sueco dos anos 70.

Quanto mais você vive assim, mais é necessário essa carapaça que te proteje do quem vem de fora, mas te machuca com o lado de dentro.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Ao lado

Atravessou triste o corredor e entrou no apartamento. Tomou coragem e começou a escrever:
“Eu vou sentir saudade de tudo. É muito estranho, mas é verdade.
Por exemplo, as voltas pra casa. Eu sei que eu ia pro trabalho reclamado da rotina. Mas no final do dia eu queria saber que você iria estar aqui do lado. E você sempre estava. Eu vou sentir saudade da certeza.
Saudade também da incerteza, por que não?
Eu podia até não pensar em você. Mas daí você aparecia. Depois disso, o dia não era mais o mesmo. Eu passava dias pensando quando você ia aparecer de novo. Eu vou sentir saudade de torcer pra que você aparecesse.
Você completava o meu dia como ninguém.
É o fim que dá graças às coisas. Realmente, agora eu vejo que você era importante pra mim. As pessoas não são como você. Será difícil achar outra igual. Até lá, eu vou ter que sentir saudade.
Saudade até dos pequenos momentos. Os atrasos. Eu trancava meu apartamento e você o seu. Só nesses atrasos é que eu dividia o elevador com você.
Saudade de você moça. Queria ter sabido seu nome. Queria você no corredor pra me dar mais um ‘oi’. O seu ‘oi’ nunca me julgou, minha grande amiga”
Abriu a porta e deixou o bilhete debaixo da porta vizinha. Junto com as contas que o caminhão da mudança esqueceu de levar.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Sobre a tal Bienal

A Bienal desse ano desceu junto com o escorregador que instalaram para os visitantes.

Em meio a brigas internas e externas, o evento que começou no último domingo (26), ficou abaixo do nível mostrado nas suas últimas realizações e o que acabou chamando a atenção do público foi o segundo andar que era ocupado apenas por visitantes que passavam por ali - e por uma criança que se divertia com tanto espaço para correr.

Chamou a atenção, não apenas pelo caráter político daquele vazio ou pela ousadia de tal manifestação, mas porque o nada expôs a arquitetura do pavilhão. Aqueles altos pilares alinhados e imponentes em um salão de igual grandeza, nos mostram uma versão paulistana e moderna da acrópole grega.

Apesar de não ter mantido o nível das últimas realizações, não se pode dizer que a mostra esteja fraca. Vale a pena conferir muitas obras ali expostas, como a "Reação em cadeia com efeito variável", da Carla Zaccagnini, onde crianças fazem uma fonte funcionar ao brincar na instalação.

A produção audiovisual também merece destaque por ter sido explorada de forma ora inovadora, ora conservadora porém inspirada. Uma pena foi o calor daquela tarde de domingo que impedia o público de ficar mais de cinco minutos nas salas escuras e abafadas das apresentações.

Uma curiosidade foi a presença de um chaveiro no piso térreo. Ele copiava, para um artista plástico, a chave dos visitantes que em troca recebiam a chave da porta Bienal - pelo menos foi o que o chaveiro estava dizendo para as pessoas.

Em alguns momentos, o elevado número de móveis também não agrada a todos.

Quem tiver a oportunidade de ir, deve ficar atento à programação do evento: haverá realização de alguns shows e palestras interessantes.

E além de tudo, a beleza plástica das visitantes argentinas que vieram conferir a exposição também agradou quem passava por ali no domingo.

sábado, 25 de outubro de 2008

Esperando Doutor II

por Gustavo Stevanato

As paredes pintadas de branco e verde água dão um tom relaxante, nos primeiros cinco minutos enquanto você ainda está cruzando a porta de vidro em direção à secretária com as palavras cruzadas. Num segundo momento, cinco minutos e meio – porque sou paciente – aquelas cores que enfeitam o imaginário e aspiram o ar doentio de todos professores de yoga e outros relaxantes musculares, como dorflex – a mulher sentada a direita está com gripe, espero que espanhola, asiática ou tifo ou qualquer outra de eficácia garantida – se completam num carrosel insuportável que me atordoa, sinto-me saciado em meu sarcasmo , no sentido cruel como na raposa e as uvas verdes, e enjoado da água com cloro destas clinicas. Preciso de um eno. E um dramin.

Preciso ainda mais de atenção agora. Não posso ficar com estas pessoas. São doentes. E insuportáveis catalisadores de minhas tensões. Não suporto mais ver quanto não vale mais a pena ver tevê as 3 da tarde. Hora triste. Acho que em alguns países os enterros são nesse horário, talvez, não pela tristeza, mas pela disponibilidade dos acompanhantes do morto ou ócio coletivo. Completar o silêncio com doses crônicas de melancolia teatraliza o tédio e faz o relógio correr mais rápido, inclusive para o engravatado do esquife. Pois bem. Faz-se de acordo e tratado que o silêncio é o inibidor do aviltamento coletivo. Então por que a insistência hipocondriaca e tuberculosa de espalhar chagas ao bater dos dentes? A sala de espera do oncologista deve ser o paraíso das clinicas. Ninguém é solidário no câncer. Preferem o pesar absoluto e inconsciente das maldades do falar. Acredito que antes da espera existia a lepra. E por isso a paciência. O que é uma chaga a mais a Lazáro ? Acredito que o respeito está no silêncio. E no constrangimento.

Posso esperar a tarde inteira. Não tenho pressa. Ainda espero pelos ônibus que nunca passam, as namoradas que se atrasam e pelos filmes que nunca terminaram de passar. Mas o que me faz redecorar as paredes soft com sangue, furar os olhos da secretária com a caneta das cruzadas, espancar o médico com o estetoscópio e sentar aliviado no meu lugar são os pensamentos que me correm à mente. Não suporto as epifanias e seus momentos embriagantes. E mais que tudo: os suicidas que pacientemente parecem gritar silenciosamente por socorro.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Esperando Doutor I

por Gustavo Stevanato

“Oh! silêncio das salas de espera
Onde esse pobres guarda-chuvas lentamente escorrem...
O silêncio das salas de espera
E aquela última estrela...
Aquela última estrela
E, na parede, esses quadrados lívidos,
De onde fugiram os retratos...
De onde fugiram todos os retratos...
E esta minha ternura,
Meu Deus,
Oh! toda esta minha ternura inútil, desaproveitada!...”

Mário Quintana

Salas de espera são confortavelmente irritantes. Não me considero impaciente. Ainda espero pelos ônibus que nunca passam, as namoradas que se atrasam e pelos filmes que nunca terminaram de passar. A velocidade é um prazer de cretinos. Eu poderia esperar qualquer outono sabendo que teria a primavera. Mas o que me faz regular o assento, procurar por uma posição comôda enquanto anseio por um cigarro – um trago e já estaria longe dali – são os pensamentos que me correm à mente. Não suporto as epifanias e seus momentos embriagantes. E mais que tudo: as pessoas que pacientemente parecem gritar silenciosamente por socorro.


Poderia ter acordado um tanto totalitário. Encontrar desprazer num pé à frente do outro ou na xicara de café que insiste em esfriar. Os passarinhos que irritantemente vêm a minha cozinha anunciar o nascer de um novo dia, quando queria apenas que ele já tivesse se posto. Não ligaria se quando voltasse do consultório – a secretária esboça uma reação de um chamado, mas não, é apenas um bocejo – e encontrasse eles mortos velando-se em girassol e alpiste se nenhum pio. Mas o que incomoda não é esperar. Tenho paciência em contar o número de pacientes a minha frente – um senhora redonda de sorriso largo e varizes aos prantos com a saia que não alcança os joelhos e tipos que desconheço por opção – e ler revistas politicamente esdrúxulas ou contratos médicos indecifráveis, como se tivesse alguém neste meio de raquiticos um médico em potencial ou estudante de medicina tardio.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Partículas Cristalizadas

O ar possui mais propriedades químicas do que a química desconfia. Os olhos sugerem um grande vazio inócuo, coisa que até hoje nós não aceitamos. Como é possível o ar ser tão leve e, em alguns casos, tão pesado?
A resposta, como diria Dylan, está voando no ar.
Enfim, hoje esse mesmo ar estava cinza. E ao cinza aderiam milhões de gotas, caindo em polvorosa. À luz dos faróis, esquivando-se das gotas, as partículas do ar tornavam-se bem visíveis.
Essas partículas, ao pouco, se uniram e se cristalizaram. E com elas, cristalizou-se tudo – pelo menos tudo que eu podia ver. Meu campo de visão tornou-se um cubo de gelo.
Com o cubo entre os dedos, um passante distraído poderia facilmente identificar algumas tonalidades de cinza. Poderia botá-lo em sua xícara de café. E, liquefeito, meu cubo de gelo não faria o menor sentido.
Cabia a mim aproveitar meu instante, eu não estava cristalizado e podia voar por entre o sólido – na verdade nós mesmos somos um elemento químico muito estranho. Basta olhar.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Sobre o fato de morar em um lugar quente (pra burro)

Desculpem-me, raros mas assíduos leitores. O calor não me deixa pensar no que escrever aqui. Então vou descrever exatamente oque sinto - sei que fiz algo parecido durante uma crise de criatividade.
Cansaço.
Fadiga.
Preguiça.
Caimbrã.
E vontade de uma cerveja após o próximo ponto final.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

O inferno são os outros

por Gustavo Stevanato

Eu acho que não gosto muito das pessoas. Nada contra elas. Ou tudo contra, na verdade. As pessoas são chatas demais. Precisam de favores, dependência, plantões, noites mal-dormidas e companhia nos dias de menor inspiração. Parece-me que fora de relacionamentos, ainda sustento vários. E o pior compromisso é saber que elas se importam com você – e não dormem com você.

Não que pense que morrer sozinho seja uma boa idéia – e também não quer dizer que a descartei – mas é que as pessoas se realmente acreditam que me importo. De verdade? Não. Os ombros molhados, as contas quilométricas do café e os porres nas festinhas não vão me fazer gostar mais de você. Eu não desprezo as outras pessoas, se outrora pensasse em alguma delas, decerto desprezaria. Mas agora não.

Não estou pegando pesado, a critério, bem leve – quando a rigor não queria nem tocá-las. Talvez o lapso de adoração que tenho pelas pessoas é saber que elas são fáceis de abandonar. Indiferentemente. Nós perdemos pessoas todos os dias, e quiçá, por todos os minutos. Sem nenhum remorso. E é isto que as faz por minutos suportáveis interessantes. Saber que elas irão embora.

E quando elas não vão, eu vou. De caso pensado. Sem desculpas de ir ao toalete ou promessas que voltarei depois ou que vou ligar no dia seguinte. Viro as costas e desapareço nos frangalhos da comunicação e do que mais ficou a frente dos meus pés. Não fico mais suspenso em expectativas. Elas não significam nada para mim. Um último toque e irei embora, e vamos fingir que significou algo muito maior - quando na verdade foi menos do que insuficiente.

Nós mentimos, ou pelo menos eu o faço sem pesar algum. Quando respiramos fundo demais, quando jogamos o olhar para as banalidades dos instantes ou bebemos copiosamente um copo vazio e sempre, sempre quando hesitamos e engolimos o caráter e alguma dignidade a seco. Mas nunca quando ruborizamos. E parece-me a vergonha o sentimento único do mundo em verdade. Não que de fato, acredite que a verdade é de longe a solução de todos os problemas. Na verdade, é a causa mortis deles. Desde as verdades dita em horas impróprias sob a graça de uma gafe a mais cristalina e transparente das verdades que acompanham as formalidades e os casais em seus escândalos, copos quebrados e alianças tomando vôo pelas janelas.

E decerto, é inevitável que todas as pessoas mintam. Assim como evitar o mau-humor no café-da-manhã ou o câncer batendo em sua porta. O que diferencia as pessoas uma das outras é um motivo – e quando não único, a situação fica cada vez mais interessante.

E não deixamos de amá-las ou odiá-las por isso. Ao contrário. Devolvemos fascinação aos canalhas e vangloriamos os bandidos. Mas ainda me parece o ódio muito mais divertido. E rende ótimas e fugazes conversas, porque falar mal das outras pessoas pode parecer sempre errado, mas nunca um engano.


(Sebastião Lisboa está de férias)

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Espelhos

Aê garotão, olha você aí. Firme e forte. Com remela no olho, rosto amassado e cabelo arrepiado, mas firme e forte. Até que pra alguém na sua situação você não está nada mal.
Podia estar melhor? Podia. Uma outra coisinha melhorada? Sim. Sem essa espinha na cara? Com certeza!
Parece que só em dia de festa essas coisas aparecem no seu rosto. Se bem que se isso não acontecesse, não seria você. Com você essas coisas sempre acontecem.
Que hora pra ficar pensando nisso, hein?! Pra ficar pensando em qualquer coisa, aliás. Todo esse tempo de pensamento poderia ser facilmente trocado por mais 5 minutos de sono.
Lave esse rosto, e que fique limpo! Inclusive a espinha, que ela não esteja mais aí quando você secar o rosto com a toalha! (Pare de gritar com você mesmo, não faz bem pro seu ego!)
Agora, sem brincadeira, isso é muito cedo. Isso não é vida. As pessoas devem te ver todo dia assim: com remelas, rosto e cabelo molhados. Parecendo um pinto molhado.
É.... é melhor você dar valor a quem fala com você, mesmo com você assim, todo maltrapilho. Se bem que cedo assim, ninguém tá muito melhor que isso. Você até que não está nada mal. Quem é o cara? Você é o cara!

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Palavras que abalam a água

Um mês de namoro recém completados. O luar, os dois de mãos dadas, e a declaração:
- Eu te amo.
Nos segundos seguintes o rosto da moça mostrava um sorriso. Sorriso amarelo, porque ela estava tensa. Isto é, queria ouvir um “eu te amo” de volta.
- Eu também gosto muito de você.
Ambos sorriram. Sorriso amarelo, pelo menos o da moça. O rapaz era novato naquilo tudo e não percebia a burrada que tinha acabado de fazer.
Pra quem não sabe, ele tinha sim feito uma burrada. Não a pior de todas, mas uma burrada. Tanto foi, que meses de namoro depois ela comentou . Ele se desculpou, ela disse que tudo bem, eles riram. Até porque, depois do ocorrido ele retribuíra várias vezes a declaração da moça.
Na verdade, era difícil alguma coisa atrapalhar aquele casal. Eram daquele tipo bonitinho, sempre sorrindo. Daquele que adoça qualquer café, um verdadeiro melaço. Namoraram, noivaram e casaram. Tudo muito rápido. Tudo sem problemas.
A única coisa que amargava a relação, uma vez ou outra, era o ciúme da moça. Daí era aquele quebra-pau:
- Eu sei que você olhou pra essa, pensou naquela, piscou pra aquela outra, etc.
Acontece que a moça era de uma família rica. Por isso era muito frágil e mimada. Mais do que isso, era insegura. Tinha surtos de depressão que vinham do nada e iam pra lugar nenhum. Por mais bela e simpática que fosse, às vezes era difícil convencê-la disso.
Alguns anos de casamento, e o que era ocasional virou comum. Quebradeira todo dia na casa dos ex-pombinhos bonitinhos. A criancinha só ouvindo os berros histéricos da mãe:
- Eu vou me matar. Não agüento mais você.
E o pai:
- Mas, querida, por quê? Eu te amo!
Falava-se de prédios altos, veneno de rato, revólver. Eram tantas as ameaças, que ninguém mais dava atenção. Até que um dia deu-se o drama. A moça se suicidou, não importa como. Deixou um bilhete com os dizeres “você nunca me amou!”.
As palavras não são só palavras. São demônios do passado, que voltam à vida para fazer tempestade em um copo d’água.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

entrego-me à pieguice

quero saber onde está aquele sorriso que você costumava colocar no meu rosto. aquele seu cheiro que grudava em minha camisa. aquela sua vida paralela em meus pensamentos.

quero saber onde foi parar aqueles sonhos que tivemos. aqueles planos que nós traçamos. aqueles momentos que vivemos.

quero saber o que vou fazer sem aquela certeza de ter ver numa noite de sexta. sem aquela incerteza sobre o que você acharia do meu novo corte de cabelo. sem aquela auto-cobrança de ser merecedor de ter você em minha vida.

quero saber onde posso te encontrar. se você está atrás de mim, me perseguindo com nossas lembranças. se você está ao meu lado na fotografia do porta-retrato. se você está na minha frente para que eu possa dizer, ao menos mais uma vez, o quanto preciso de você.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Disse sim a mim

Me peço em casamento e aceito sem pensar duas vezes.
Não me conheço muito bem, mas estamos juntos desde sempre. Difícil alguém estar mais acostumado com todas as suas manias que carrego. Conheço muito bem essas minhas cicatrizes que estampam seu corpo.
Um amigo me disse que, atualmente, o casamento nada mais é do que um casal procurando estabilidade: a mulher procura estabilidade financeira, o homem procura estabilidade sexual. Essa afirmação me parece um resquício da sociedade machista de outrora, eu não quero acreditar que ela seja verdadeira. Mas também quero acreditar que um amor verdadeiro ainda exista e que este não se abale com os obstáculos encontrados no cotidiano. Ainda não tenho certeza do que é real ou não.
Meu casamento não tem data marcada, não terá festa. Somente eu estarei comigo nesse dia. Tomaremos um espumante barato e desistiremos da vida amorosa com outras pessoas em prol de um futuro que construiremos juntos. Somente eu e eu.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

As faces do anel

(já que as famosas estão se casando...)
As alianças rolam sozinhas até os bueiros. Tanto para os bonzinhos quanto para os cafajestes.
É a lei de murphy: saiu do dedo, elas rolam e se perdem. Quando tudo são flores, o anel coloca-se sozinho no dedo. Quando a fase é ruim, aquela posição para ele é insuportável.
Insuportável. A face obscura da argola dourada.
- Quer casar comigo?
- Não!
Simples assim.
É incrível, aliás, como um anel se desvaloriza no mercado depois de rejeitado. Isso ninguém conta. Nem a mais depressiva das novelas.
Até porque o outro lado da argola é mais divertido.
-Sim!
Grãos de arroz. Bêbados cortando gravatas. Noite de núpcias. A "primeira" vez.
Mesmo assim, já que se tratando de anéis nada é um mar de rosas, existem ainda outras possibilidades de bueiro. Por exemplo, a "sindrome do sim": diz-se que o sexo oposto se sente atraído por aqueles com um anel no dedo - ah, a lei de murphy, como ela gosta desses assuntos.
Nem sempre esse é o problema. As vezes, o bueiro simplesmente acontece. Nesses casos, a culpa é da aliança. Ela que corre sozinha até os bueiros. Lógico que a gravidade também ajuda.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

F. na padaria

Três pessoas ainda na sua frente. Já escolhera os pães que queria levar. Mas, provavelmente, não os levaria. Ou porque algum dos três, ou eles todos, por terem a vantagem física os levaria antes; ou pela incapacidade telepática da atendente de adivinhar os pães escolhidos – uma vez que a distância que o separa dos pães é de consideráveis dois metros, com um balcão de barreira entre, "aquele ali perto do vidro, isso! agora o que está formando a Ursa Maior com aqueles outros..."difícil seria muito difícil dizer à moça quais eram os escolhidos, foram escolhidos pela aparência, sim, os mais aprumáveis, mas tinha algo além disso alguma coisa inexprimível que o fizera escolher aqueles.

Por falar nessa moça, quais seriam os critérios usados por ela para a seleção dos pães?
Porque ela não deve simplesmente recolher no saco pães ao acaso. Isso seria um absurdo.
Será que ela associa os pães às pessoas, traçando uma mística ligação entre estas e aqueles? Seria essa habilidade um pré-requisito na arte ou no ofício de escolhedora de pães? Mesmo que isso ocorra inconscientemente. Freud explica. Breton escreve. Dali pensou que pintava. Mas se é inconsciente, nem Breton escrevia. Tampouco Freud explicava.

Aposto que é isso: ela olha o rosto do freguês, analisa como ele faz o pedido (o que pode variar muito), identifica o timbre da voz etc e parte em busca dos pães certos! Quem diria quantos mistérios há no nosso pão de cada dia. Se considerarmos que o Universo segue uma lógica, isso pode ser bem verdade.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

a arte de esquecer

Existem coisas que não sei se já encontraram solução, como porque cismamos em ficar com algumas lembranças, pessoas e canções na mente. Como se dá a escolha delas? Por que elas ficam impregnadas na nossa mente? E o mais importante de tudo: como esquecer?
As vezes algumas dessas coisas doem e ficam lá, batendo incessantemente. A vontade de esquecer consegue ser maior do que o afeto que você já teve ou ainda tem. Mas não esquecerás! Ficará lá, diariamente te jogando na cara como um passado melhor do que o presente.
Algumas dessas coisas não conseguem ser lembradas espontaneamente. Precisam de um som, uma imagem, uma data. Mas quando surgir a menor brecha, lá estará!, sua mente ficará toda voltada àquilo.
Como tudo na minha vida, são coisas que vou levando na espera de que um dia não esteja mais ali. Ou, se estiver, que não seja algo tão dolorido. Preciso esquecer. Preciso seguir.
Chega dessas mãos do passado a sufocar-me.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Mais uma sobre tempo

Quando criança, todo mundo pergunta o que a gente quer ser quando crescer. Quando a gente cresce, só a gente se pergunta isso. Os planos se desgastam e aparecem outros. Na data combinada de se divertir a gente se aborrece, e no meio do tédio a gente se diverte. O destino, o tempo, ou seja lá o que for, tem uma ironia sarcástica e deselegante. Um revoltado com isso foi o João.
João queria ser médico e viajar o mundo. João foi comunista, foi extremista, foi direitista. Foi solteiro, casado, divorciado, noivo. Andou de trem, andou de ônibus, andou de carro, andou a pé. Morou de aluguel, construiu uma casa, morou em hotel, morou com os pais. Ganhou muito, ganhou pouco, o suficiente, não ganhou nada. Teve um cachorro, um gato, uma cobra, uma aranha, ou bicho nenhum. Foi otimista, pessimista, realista, religioso. Acreditou em sorte, depois em destino, depois em destino e sorte, depois em sei lá o que. Teve poucos e bons amigos, muitos e bons amigos, nenhum amigo, seu pai e sua mãe. Foi João, foi José, Maria, Pedro, César, Rodrigo e Luis Henrique. Foi advogado, médico e jornalista. Nunca saiu da cidade e nunca soube dar uma injeção.
Em geral, o tempo é mais forte do que os planos – em geral. Por isso mesmo, cada dia mais a gente quer conhecer o tempo. A ciência também não consegue explicá-lo. O que se sabe é que o espaço-tempo é curvo e altera qualquer trajetória que queira ser linear.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Viajante

Quero tomar o timão desse barco. Deixar ele à própria sorte já não me satisfaz. Fazer a viagem até aqui à deriva fez com que eu não me cansasse, mas enquanto eu não começar a guiar esse barco o meu destino ficará cada vez mais longe.
A diversidade de opções é sempre muita: velas, ventos, correntes. Mas tenho que decidir, escolher a opção que me leve mais rápido e em segurança.
Enquanto o barco rasga o mar, a palavra “Vida” escrita nele recebe os socos das ondas e luta para manter seu equilíbrio. O vento que parece ser apenas um detalhe da vida terrestre torna-se a força que me guia.
A sincronicidade das correntes com o vento, e até entre elas, pode mudar minha trajetória. Ou me manter mais firme nela.
As tempestades ocasionais trazem a vontade de rasgar todos os mapas. A falta delas também me dá essa vontade.
Talvez eu simplesmente não possa guiar meu próprio navio e precise de alguém para isso. Talvez a tripulação que carrego não seja mais suficiente.
Agora você encontrou essa carta dentro de uma garrafa. Agora eu posso estar em qualquer lugar desse mundo. Em meu destinou. Ou ainda perdido na imensidão desse mar.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Sujo

Regulou no inverno e girou a válvula. As primeiras gotas começaram a cair. Respirou de alívio, precisava se limpar. Pegou o sabonete de glicerina e começou a se ensaboar. O banho era quase uma terapia, nele era quando tinha os pensamentos mais altos resolvia questões existenciais e discutia filosofias. O vapor começou a tomar conta do banheiro. Gostava de respirar o ar úmido, sentia que se lavava por dentro também. Pegou a bucha e começou a esfregar o corpo ensaboado. A superfície áspera em atrito com seu corpo aumentava a sensação de limpeza. Como se a dor purificasse ainda mais. Auto-flagelação dos membros mais fanáticos da Opus Dei. Mas algo acontecia. Se sentia de forma estranha. Esfregou-se mais um pouco e enxaguou-se. Mas não sentia o corpo limpo. Sabonete no fim, abriu outro. Tornou a ensaboar, esfregar e enxaguar: mas ainda não se sentia livre da sujeira. Repetiu ainda uma terceira vez todo o processo. O vapor aumentava, mesmo assim fechou um pouco a válvula para tornar a água mais quente. Esfregou-se mais e freneticamente. A pele começou a ficar vermelha. Mas era insuficiente. Olhou para a pedra para esfregar o calcanhar. Pegou-a e começou a passá-la no corpo todo, inclusive no rosto. As primeiras lágrimas de dor começaram a cair mas não conseguia parar. Aumentou mais ainda a temperatura da água. O vapor já deixava a atmosfera sufocante. Escorrendo pelo corpo junto ao sabão e água já se notava um pouco de sangue. No entanto, a pedra continuava áspera a dilacerar a derme. Friccionava-a contra o corpo cada vez mais. Começou a soluçar e chorar convulsivamente. Todo o corpo tremia, mas não conseguia deter as mãos pressionando a pedra contra a pele. Gemia de dor. Mas guardava um sorriso pelo excitamento de sentir a limpeza. Dilacerava até o próprio sexo a fim de remover toda sujeira. No chão, os pés pisavam sangue e espuma, o ralo entupia-se com pedaços de pele. Com nojo da sujeira que o tomava rompeu num violento vômito. A pedra continuava, rasgando seus tecidos. A sujeira era inextirpável. Tomava conta de seu corpo, era parte dele, era ele próprio. Não agüentou e desmaiou de dor. Na queda, sua cabeça bateu na válvula abrindo um profundo corte na cabeça. Sangrou até morrer.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

No seu próprio Céu de Baunilha

Olá, você não me conhece, mas eu sou você. A genética, os pensamentos e tudo mais. Na verdade, quase tudo. Eu precisava de um começo impactante pra chamar sua atenção. Afinal, ninguém mais do que eu, sabe o quanto você se dispersa em momentos como esse.
Deixando de lado a enrolação, olá de novo. Eu vou parecer meio metido para alguém que você acabou de conhecer. Com certeza, você nunca viu no espelho um reflexo tão insolente.
Eu sou tudo aquilo que você gostaria de ser e mostrar para os amigos. Só que comigo é sempre um show e eu sou o ator que faz as coisas acontecerem. As coisas que você não faz. Não faz porque não consegue, não porque não quer.
Quando você pensa estar vivendo, eu assumo e te manipulo. Eu sou um divertimento feito por você e para você.
Na falta de um roteiro pra mim hoje, decidi te contar tudo isso. Não porque eu queira o seu bem, mas porque eu não tinha mais o que fazer.
Agora, antes que um raio de sol me interrompa e estrague tudo, eu te falo o que você deve estar se perguntando. Apesar da semelhança, eu não sou você. Mais uma vez, preste atenção, eu não sou você. Não importa o quanto você queira negar. Ao abrir os olhos, lembre-se que eu sou o seu herói. Tente me imitar, é tudo que você pode desejar. E eu não falo isso com presunção, falo como alguém que sobrevive dos seus desejos bobos.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

sobre o agora

A falta de inspiração é o pior pesadelo de qualquer pessoa que precisa produzir algo. Mesmo tendo um tema na cabeça e a idéia de onde você quer chegar, as vezes as coisas simplesmente não fluem.
Preguiça, cansaço, stress. Essas coisas podem até influir, mas se você não consegue ligar aquele “piloto automático”, não adianta tentar. Se não fosse pelo computador, a lixeira lotaria muito mais rápido com papéis amassados e idéias mortas.
É isso que está ocorrendo comigo, então eu estou te enrolando até aqui com essa coisa de metalinguagem. Se você leu até aqui pode parar se quiser. Eu vou apenas enrolar mais um pouco para o texto não ficar muito curto em comparação com os outros e assim chamar atenção – a preguiça faz as pessoas procurarem o que é mais fácil, mais rápido, ou seja, um texto curto. Esse texto não merece destaque algum entre o que já foi produzido para esse local.
Se você chegou até aqui é um herói. Talvez tenha pensado que vale a pena esperar por alguma frase que lhe importe. Ou não. Não sei. Desculpe-me.
Só mais um pouco agora. Acredito que desse tamanho ele já fique ali como um bloquinho invisível de palavras. Até.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

A pedra e a porta III

A pedra ouvia incrédula as palavras da lixeira. "Não pode ser verdade. Tenho fé na pureza de minha amada." Mas a lixeira continuou a semear a discórdia e confirmou o ditado: água mole em pedra dura, tanto bate até que fura. A pedra que antes fingia não ouvir agora já olhava atravessado para a suja Iago. Pediu então a um grilo, que ali perto estava, que fosse até a porta indagá-la sobre. Num pulo, chegou. A porta surpresa começou a gaguejar a resposta. O grilo estranhou. Ela proferiu impropérios sobre a lixeira, disse para não dar ouvidos, contou a versão verdadeira sobre os dois. Mas contou. Noutro pulo, o grilo voltou e reportou o que ouvira a porta, mas de trás-pra-frente. Quando ouviu sobre a existência do caso não quis ouvir mais nada, nem a versão verdadeira. Estilhaçou-se em mil pedaços.

O dia seguinte amanheceu com nuvens negras a anunciar tragédia e tempestade. A pedra mostrava olheiras semblante carregado e um hálito de bebida. A porta de tanto chorar a noite estava meio envergada. A lixeira se ria por dentro. Os primeiros pingos caíram antes do almoço; depois dele, o vendaval e a enxurrada limpavam tudo que se passara há pouco, a sujeira e a beleza. A pedra nem ofereceu resistência, deixou-se levar para o bueiro. A porta assistia desesperada ao desfecho. Num impulso, trancou-se. As pessoas batiam querendo fugir da chuva, mas não abria. Até que vieram três e noutro impulso fizeram-na em pedaços.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

sobre postais

Era manhã de domingo e, como de costume, ele foi comprar pães e o jornal. Ao chegar na banca, encontrou pendurado um expositor de cartões postais que jamais havia reparado. Imaginou que já estava ali há bastante tempo pelo amarelado do plástico.
Correu os olhos por aquelas imagens que traziam lembranças de algumas viagens e parou quando encontrou o postal de um lugar que nunca tinha visto tampouco escutado a respeito.
A foto mostrava uma árvore florida, um balanço e um lago ao fundo. Ele olhou, fechou os olhos e imaginou como seria bom estar ali algum dia. Acabou levando somente o jornal, mas a lembrança daquele postal ainda iria lhe acompanhar.
Continuou em sua rotina até o dia que surgiu a chance: iria atrás daquele lugar. Estava decidido a arriscar-se pela perigosa estrada que o levaria, o risco parecia valer a pena. Tomou coragem, se preparou e foi.
Chegou e logo estava vendo aquela bela imagem do postal. As flores da árvore caiam aos poucos com o vento que também fazia o balanço se movimentar lentamente. O lago transmitia uma sensação de calma que poucas vezes sentira.
Mas ao olhar para trás, encontrou uma cidade ainda mais feia do que aquela da onde partiu. Não conseguiu se imaginar feliz ali. Não foi para isso que ele correra tantos riscos. Não deixaria tudo para trás por uma única paisagem se o resto estava em ruínas. Mais uma vez, foi enganado por uma imagem bonita, assim como talvez outras imagens não tão bonitas o tenham afastado de lugares que lhe cativariam.
Mas ele não pensou nisso, voltou para sua cidade disposto a não acreditar em mais nenhuma imagem. Ali, seguiu comprando seus pães e jornal, até seu último domingo.

sábado, 6 de setembro de 2008

A pedra e a porta II

Era manhã. Da padaria, o cheiro de café pão e baunilha misturava-se a outro, viscoso e amargo. Estava agitada. Ouviam-se gritos e barulhos secos e surdos. De repente, um homem pingando sangue e meio encurvado rompe de dentro correndo. Esbarra nos jornais da banca e termina o banho de sangue. Levanta-se e sai em disparada novamente. No meio da correria desafogada, chuta uma pedra. Ela atravessa a rua num vôo insólito entre carros e pedestres e pânico e acerta uma porta na calçada oposta. Foi o encontro. A porta ficou estarrecida com o beijo roubado, que acabara de fazer outra marca em sua superfície – e outra por dentro. Mas esta contaria uma história de amor bonita. O casal não acreditava na ironia do destino. Estavam naquela fase alter-goísta, só tinham olhos um para o outro (metáfora da metáfora, uma vez que pedras e portas são seres desprovidos de olhos, mas nem por isso deixam de ver o que acontece em derredor). Não se importavam de seu amor ser fruto de sangue derramado. Assim acontecia nos grandes romances. Pelo contrário, até sentiam-se envaidecidos, com o prenúncio de uma grande história de amor.

A pedra fazia as juras de amor mais doces e a porta as ouvia toda derretida. A vida agora era boa e não precisava de explicações. Bastavam as sensações.

Quando a tarde o lugar tranqüilizou-se, os dois fizeram planos e marcaram a data. O sol ainda arrastava seus últimos raios a iluminar o casal. Foi quando outro de repente aconteceu. De supetão, num movimento brusco, a porta se abriu. Os dois se tocaram com tamanha intensidade que nenhum poeta seria capaz de cantar o gozo de ambos. Mas quando recuperadas as consciências, viram-se separados. A pedra fora jogada para a calçada perto da lixeira. O destino parecia vir cobrar pelo feliz acaso da manha. De dentro do prédio, uma moça sai eufórica para cair nos braços de seu namorado.

A noite já ia alta. A pedra amargava a situação. A porta, chorava. Vendo isso, a lixeira principiou, como quem não queria nada, uma conversa com a pedra: “Comigo também foi assim. Me cuidei me limpei me humilhei. Ela fingiu amar. Comprei anel, botei no papel. Mas quando me descobriu pobre e suja: me largou.”

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

A pedra e a porta I

Era uma rua do centro. Muitas pernas passando, olhos a espiar manchetes e aqueles cheiros de pão, café e baunilha que saíam da padaria. Devido a sua baixa estatura, não conseguia desfrutar dessa atmosfera as notícias, mas não era mal informada: as pessoas às vezes liam, espantadas, algumas delas e não foi difícil descobrir uma regularidade no que ocorria no mundo animal, no humano, sobretudo. O reino mineral era mais parado, mas a ironia só vale aos olhares desatentos dos que se moviam de um lado para outro sem chegar a lugar nenhum. A reflexão é dela, da pedra que vivia na rua do centro, a suspirar o perfume da padaria, se distrair com os pés - que às vezes a faziam mudar de ponto de vista -, mas sem distrair-se de onde estava o seu amor: do outro lado da rua.

Mesmo sendo caminho obrigatório para muitos, não recebia a atenção devida. Pelo contrário, às vezes tratavam-na grosseiramente, com pontapés e empurrões, batidas exageradas e até xingamentos quando ao girar sua cintura não se abria. Ficava quase na calçada, separada apenas por um degrau / batente; era madeira nobre, mas exposta ao tempo foi perdendo a majestade (exterior). Seus vincos contavam uma vida triste: desde a extração ilegal que separou sua família até os destratos humanos do dia-a-dia. O amor também não tinha sido gentil com ela: apaixonou-se uma vez pela lixeira do mesmo prédio que fazia parte, mas esta só a procurava quando suja e fedida, no resto do dia se exibia garbosa aos olhares atrevidos. Há pouco, a porta percebera os galanteios de uma pedra do outro lado da rua.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Por um horário melhor

Eu não sei como é que tá aí. Mas aqui tá assim: sou cabeleireiro, trabalho com povo, por isso sei do que a cidade precisa. Sou vendedor, advogado, sorveteiro... Pensando nisso, e em outros discursos, tomei a liberdade de redigir alguns mandamentos para os candidatos:

1 – Não farás rima com teu nome, muito menos repetirás teu nome por todo o tempo que a você foi destinado.

2 – Não falarás como se fosse meu amigo, muito menos como se estivesse embalsamado.

3 – Não dirás que sua proposta é fazer uma cidade melhor.

4 – Não tocarás uma música triste quando for falar do mandato atual.

5 – Não tocarás Living a vida Loca se você for o prefeito atual.

6 – Se subir nas pesquisas, de 1% para 2%, não dirás que a marcha da vitória começou.

7 – Não dirás “você já me conhece”. Não conheço, não conhecerei, não quero conhecer.

8 – Não moverás os olhos ao ler o texto.Lembre-se, seus olhos são como você, firmes e decididos.

9 – Não dançarás. Sob hipótese alguma dançarás.

10 –Não pularás nos braços do povo ao final do discurso. Isso já resultou em várias tragédias.

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Sobre horóscopo

“O trabalho está cansativo, mas você poderá sentir a partir de hoje que ele começa a passar por algumas mudanças. Observe cada detalhe e não deixe escapar nada que possa comprometer seu desempenho. Trabalhe apenas; faça cada coisa que deve ser feita sem deixar nada para amanhã.”
Sou um leitor diário daquela coluna de horóscopo que sai nos jornais. É uma mania que não sei como adquiri e não sei se um dia irei abandoná-la. É, eu sei que é uma coisa boba, não acredito que isso mude alguma coisa em minha vida, mas por algum motivo o leio todos os dias.
Essa “previsão” que coloquei no início do texto, encontrei em um site e na verdade não gostei muito. O trabalho está cansativo? Que trabalho? Não estou trabalhando e quase todos os trabalhos são cansativos. É claro que ele está passando por mudanças, até mesmo a rotina que aprisiona as pessoas com suas algemas permite mudanças.
As únicas partes que prestam para algo já estão no senso comum de todos. Não deixar escapar pequenos detalhes, não deixar que coisas comprometam seu desempenho, não devemos deixar o que podemos fazer hoje para amanhã...
Apesar disso tudo continuarei lendo e afirmando que gosto. E como quase tudo nessa vida, devemos acreditar e segui às vezes. Porque sempre pode acontecer.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

O cachorro da cantina

Ontem foi um daqueles dias típicos de faculdade. Você decide que dessa vez vai levar as coisas a sério e começa fazer trabalhos antigos – aqueles que parecem que nunca vão sair do papel. Então, você começa o primeiro deles e algo dá errado. Calma, é só o primeiro de muitos outros trabalhos. Vamos pro segundo! Outra coisa dá errado. Resultado: “vamos pra cantina ?”.
Chegando lá, a gente fez o mesmo pedido de sempre – chegamos até a pensar em rebatizar o pingado com nosso nome, algo como “vamos na cantina tomar um Murillo?”. Foi quando algo surpreendente aconteceu: um cão apareceu. Grande surpresa! Mas ele era daqueles cachorros bonitos que fazem aquele olhar que te deixa com vergonha de estar comendo um pão de queijo. Não dá pra acabar com a fome na África, mas com a fome de um mísero cãozinho dá. Enquanto você pensa isso, ele percebe que a estratégia está dando certo e reforça o olhar.
Pronto! Lá está você com fome e o cachorro se esbaldando no pão de queijo. Quando terminei o último pedaço, olhei pra ele como quem diz “É só isso, campeão. Agora só nos resta a amizade”. Ele olhou de volta, olhou de novo, até que se cansou e foi dar uma volta pela cantina, em busca de outra pessoa com comida. Meu deus, mas essa surpresa fica cada vez maior!
Mas o negócio é que o cachorro aprende com os erros e acertos e repete o que dá certo. Eu, Homo Sapiens com cérebro complexo, sempre dou o meu pedaço de comida pro cachorro.
Balanço do dia: Nenhum trabalho feito, com fome!

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Sobre jardins e lixos

Alan estava cansado. Queria olhar pela janela, mas sabia que a realidade por trás daquele vidro embaçado não iria agradar.
Não agüentou e deu uma leve puxada na cortina. Correu lentamente os olhos pelo gramado e lá no fim estava o lixo. Não era seu lixo, esse era o problema. Alan passou a separar seu lixo, entregava para a coleta seletiva. Mas por algum motivo as pessoas traziam os lixos delas para seu jardim.
As pessoas que ali passavam tinham como primeira imagem aqueles sacos de material em decomposição, o jardim de Alan não era sequer olhado pelos transeuntes. Ele ia até lá quando o Sol já não era mais o seu holofote natural, tirava aquele lixo dali, limpava o churume que corroia sua calçada e regava seu gramado.
No dia seguinte lá estava o lixo novamente. Alan já não agüenta mais isso. Por que? Por que as pessoas tinham que trazer mais lixo para alguém que já o tem, mas aprendeu a dar um jeito nele? Por que cada um não cuida de seu lixo? Você produziu o seu lixo, por que eu teria que ficar com ele na minha porta?
A solução para Alan parece ser simples. Não irá mais deixar o seu jardim à vista das pessoas. Irá erguer ali um muro alto, que esconda tudo dos outros. Não mais verão jardim ou lixo.
E Alan não terá que tratar com a podridão dos outros.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Em algum lugar do Céu...

Ah! Abro mão de minha onipresença para assistir aos homens desafiarem minha criação, sobretudo esse tal de homem-carpa, fico alguns dias sem prestar atenção nas crianças e quando ponho os olhos nelas novamente estão brigando! Não posso deixá-las sozinhas nem por um segundo (alguns dias correspondem a um segundo na extensa eternidade divina).

Deus aproveitava o descanso – desde que inventara a Ciência, os homens pensavam menos Nele e até as orações haviam diminuído – numa macia nuvem branca para assistir aos jogos olímpicos em Beijing. Com sua divina sabedoria, sabia que esse passatempo havia sido inventado por um povo pagão politeísta, mas, misericordioso como nenhum outro, relevava esses detalhes. Ia até além (que ironia): pensava que o Esporte e a Arte eram os meios que mais aproximavam os seres humanos Dele. Divertia-se com as provas de natação, quando teve um pressentimento fortíssimo (onisciência...) e viu que logo ali dois países se desentendiam.

Essas duas - Geórgia e Rússia – até pouco viviam juntas, agora, estão aí...só podiam ser do gênero feminino mesmo (Deus às vezes tinha acessos machistas, o que põe em dúvida se o machismo é um defeito...brincadeira leitora, foi o convívio com sua criação, o homem, ser imperfeito e grosseiro que passou maus hábitos ao Divino). Eu disse pro meu filho frisar bem a parte do “ceder a outra face”, mas parece que só aquele magrinho careca que fazia as próprias roupas , que por sinal: nem cristão era, entendeu.

Será que devo enviar Jesus para uma missão de paz, novamente? Aquela Condolezza Rice parece mais ameaçadora que pacificadora...
Bem, quer saber: enquanto essas almas ceifadas pela Morte continuarem a ser destinadas pro Inferno e não atrapalhar a paz celestial de minha morada: tudo bem.

E Deus se ajeitou melhor na nuvem, procurando uma posição mais confortável, para continuar a assistir ao espetáculo (da vida).

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Um pouco de privacidade

- Mãos ao alto. Larga essa arma ou eu atiro... Eu tô avisando!
- O fato de a arma estar dentro da minha boca não te diz nada?
- Quê? Fala pra fora!
- Eu tô tentando me matar, porra!
- Sei, sei...joga essa arma no chão ou eu te mato!
- Meu Deus, mas você é muito burro mesmo. Você só ia estar me ajudando!
- Burro?! Você perdeu a noção de perigo. Você não tá vendo minha arma, não?
- Como eu já disse, eu também tenho...
- Ah tio, não complica. É só passar o dinheiro.
- Se eu tivesse dinheiro você acha que eu ia estar me matando?
- Você que tá me matando aqui, tio!
- Olha, cansei. Se você me dá licença, eu vô me matar.
- E eu? Vô ficar sem dinheiro nenhum?
- Juro que morto eu não vou oferecer muita resistência.
- Quê?
O suicida não agüentou e fez o que qualquer um faria:sacou a arma da boca e fez o ladrão calar a boca.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Sobre o Brasil olímpico

Até o momento os atletas brasileiros estão naquele nível de sempre - alguns chegam com condições de lutar por medalha, outros não têm chance alguma e tentam se superar para conseguir algo a mais.
Eu já fico satisfeito de ver aquelas pessoas que passam por tantas dificuldades chegar onde chegaram, representando um país que lhes vira as costas durante quatro anos e de repente os exalta como heróis, isso que ganharem algo.
Assistindo as competições não consigo compreender até discuto com as pessoas que não valorizam esses atletas, eles podem não estar ganhando nada, mas já estão entre o melhores do mundo. Duvido que se essas pessoas que criticam fossem o décimo oitavo melhor do mundo em qualquer coisa já não teriam algum orgulho.
Outra coisa que percebi é a semelhança entre os atletas brasileiros e a Rede Globo. Aqui no Brasil, esses atletas e essa empresa são os maiores, dominam o cenário nacional. Mas quando se trata de Jogos Olímpicos, ambos acabam escorregando. Enquanto os atletas acabam perdendo por detalhes, a Globo falhado muitas vezes. Desde erros em informações a erros técnicos.
Se tivesse uma competição sobre vazamento de áudio a Globo seria nosso Phelps.
Vou continuar torcendo pelo Brasil e defendendo-o dos corneteiros. Somente deixo o lado patriota de lado quando o time feminino de volêi da Itália entra em quadra. Não há patriotismo que supere a beleza de Francesca Piccinini e companhia.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Cubículos

Após alguns anos de trabalho no escritório, ele se sentiu doente. Eram umas crises que começavam com uma leve dormência. Logo o quadro evoluía para uma intensa dor de cabeça e cansaço.
Ausentou-se do trabalho por motivo da doença. O médico da empresa o achou muito novo para estar tendo um derrame. Chutou estresse ou problema psicológico – como virou moda hoje em dia.
Não havia motivo para nenhum problema psicológico. A rotina era a mesma de sempre.
Viu-se obrigado a conviver com um numero maior de colegas de profissão. Afinal, era preciso convencer toda uma empresa que ele precisava mesmo se ausentar.
Incrível que hoje em dia não há mais privacidade nem na dor de uma doença. Foi só ele contar que logo todos sentiam a mesma dor que ele. E não chegava a ser mentira. Muitos foram capazes de descrever sintomas que ele mesmo não fora capaz de descrever.
Outras empresas da cidade enfrentavam o mesmo problema. Muitas vezes a dispensa médica era difícil de conseguir porque os chefes também se sentiam doentes. E assim com os vice-chefes, chefes de departamento e supervisores responsáveis.
Os trabalhadores que saíram de seus cubículos para pedir demissão, não encontraram ninguém. Nos almoços de negócios, muitos pediram licença para ir ao banheiro. O suor na testa indicava uma crise de dormência geral. A mão para secar a gota apresentava uma transparência. Ao espalmar a mão sobre a testa, o espelho indicava apenas uma testa – essa é a definição de transparência.
Não é preciso dizer que logo o espelho não apontava mais uma testa também.
Sobraram apenas pedaços de panos em formatos de pernas ou tronco. Para outros nem isso sobrou. Aos que restaram pano, formaram-se grupos de 3 listras, jacarezinhos e nomes franceses. Aos outros, restaram apenas panos sem forma nenhuma.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Além do bem e do mal

Me interesso muito por política e por esportes. No jornalismo, faz-se uma grande diferença entre as duas editorias. Política é nobre, esporte é coisa pra galera do fundão.
Hoje, início das olimpíadas, o esporte mostrou-se mais nobre. Diga-se de passagem, não foi a primeira nem a última vez. Um exemplo é Taiwan, Japão e Hong Kong, antigos desafetos chineses, serem tratados a pão-de-ló na cerimônia de abertura.
Outra prova é o fato de morarem em uma vila olímpica agora milhares de atletas. De duzentos e quatro federações de diferentes países, diferentes em tudo que se imagina. Nem por isso estão brigando fora das quadras, tatames, campos...
Por 16 dias a humanidade eleva-se ao patamar dos animais de novo. Apenas fazendo a boa e velha seleção natural. É uma magia passageira. Mas entre um pouco e nada, eu fico com um pouco.
Claro que há interesses por trás de tudo que acontece nesses jogos. Quem não quer ser sócio da China, ou até cortar as asinhas dela?
De qualquer modo, quem proporciona tudo isso é o esporte. Os atletas são os popstars do momento, e nenhum ato político ou terrorista vai ser mais influente do que eles. Tem que ser muito nobre para sentar e compreender isso.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Sobre Micróbia

Um dia eu sonhei com uma garota e como quase todos os sonhos, o tempo e o espaço não tiveram sentido algum. Nesse sonho conheci uma garota que tinha o nome já citado no título. Não sei quanto tempo imaginei tudo aquilo, não sei quanto tempo se passou naquele contexto onírico, mas foi o suficiente para conhecer aquela menina. Depois de acordar, eu já não lembrava o rosto dela. Mas sabia que era um rosto agradável. Já não me lembrava porque tinha gostado dela, mas sabia que tinha gostado.

Eu já não lembrava disso até rever uma amiga pra qual tinha contado o tal sonho. Eu me lembrei que tinha acordado com uma sensação boa, como se aquela garota fosse real. Concluímos que ela era uma projeção do que acreditava ser uma garota ideal.

Minha amiga foi ainda mais além, nessa projeção eu ainda coloquei o que seria um “defeito”: o nome. Pra ela, talvez seja isso que tenha tornado a sensação ainda mais real. Todos nós temos defeitos, e para que ela não tivesse um desvio de caráter ou beleza foi batizada como Micróbia.

Eu lembro que na época apenas ria do nome e não pensei no que ele pudesse significar. No sonho aquilo não tinha estranhamento algum, era apenas mais um detalhe que só foi receber importância quando acordei. Agora eu tento encontrar uma conclusão: será que temos que aceitar as diferenças como se estivéssemos dormindo para aquilo ou ao encontrar uma versão real do que projetamos vivemos sonhando?

sábado, 2 de agosto de 2008

Vincente - Duchamp-me

Como é que um mendigo consegue passar num concurso público? Tem gente que consegue saltar o fosso que separa o Brasil dos brasileiros. Gosto de ler sobre o banco. Procurava saber sobre commodities, ouro. Parece que o economês não é tão difícil assim. Exposição do Duchamp. Será que é verdade que num quadro ele misturou sêmen à tinta? Deve ser mentira. Tanto tempo e a Débora não tinha perdido a mania de falar sobre o mais recente ex-namorado. Pensei que antes eu implicava com isso. Ciúme. Mas aquilo é um traço seu. Que coisa! Mas tem uma história de sêmen no chinelo que virou obra de arte e está até num museu.

Ah, a Antonieta também não mudou nada. Deve ser coisa de família. Não me diga para permanecer o mesmo. Foucault. Mas a Débora continuava gente boa. E inteligente. Era uma delícia também. Essas três coisas geralmente são excludentes. Mas do egocentrismo ela não escapou, às vezes era difícil suportá-la por isso. Também, como ela poderia achar que o mundo não girava ao redor de seu umbigo? É, mas não girava, coitada. Política...mais um escândalo envolvendo um empresário. Será que alguém já conseguiu ficar rico honestamente? E a mulher dele, usou uma coleira no carnaval com seu nome...tsc tsc. Meu Deus, o Duchamp. Eu sabia que aquele mictório não era sua maior loucura.


Vincente lia a revista e lembrava o filme na casa de Débora. Tinha sido bom, colocar o papo em dia. Durante o filme, ele disfarçava bem: tinha dito que não assistira, mas já o tinha. Comentários em algumas partes: meio sorrisos e entreolhares. Os dois tinham saído algumas vezes mas eram quase como acidentes; depois ela começou a namorar o último ex, o vestibular, e os dois se viram cada vez menos. Aproveitou também pra conversar com a mãe da menina e com a irmã, o pai não costumava chegar tarde, mas neste dia nem sinal: deixou um abraço pro seu Inocêncio.


Ele naquelas fotos jogando xadrez, ninguém suporia! A Denise continuava bem sem vergonha e linda (de uma beleza diferente da irmã. Débora era bonita, mas uma beleza normal, até cansada, gasta. Denise era de uma beleza angelical, ingênua, quase sem querer). Angelical, mas, uma vadia, sem eufemismos. Só os pais e a irmã não percebiam suas insinuações. Nem quando eu estava enrolado com a sua irmã ela perdoava. Algumas vezes precisava sair do quarto da Débora de madrugada e ela na sala, assistindo televisão só de calcinha. Vadia, fazia questão de se levantar pra me dar tchau. Que moralista! Haha, pobrezinha, era verão, há que se considerar. Ah amanhã o trampo é tranqüilo. Graças a Deus


Vincente era quase um ateu materialista, mas vivia agradecendo ou atribuindo acontecimentos a Deus, força de expressão. Pegou no sono.

quinta-feira, 31 de julho de 2008

Silvia Renata

Durante séculos as mulheres foram reprimidas pelos homens, cenário que foi modificado com a Revolução Sexual. Hoje a situação se encontra totalmente invertida, as mulheres reprimem os homens.
E isso acontece desde o momento em que recebemos o nosso cromossomo Y, e uma mulher nos abriga em sua barriga por 9 meses. Só por causa dessa estadia, elas já pensam que são mais donas de nós do que o cara que nos passou o tal cromossomo. E assim começa a lavagem cerebral. Nossa sociedade está sendo criada por mulheres. Não são apenas as mães, são tias, avós, professoras e até mesmo desconhecidas. Você não pode fazer nada que já vem uma voz: “não coma com as mãos, menino”, “vai jogar bola de novo, menino?”, “arrotar é coisa de porco, menino”, “ô menino, vai botar uma roupa que temos visita”...
Mas somos como bactérias. Se não nos combaterem direito vamos ficando cada vez mais resistentes. Aprendemos a lidar com elas aos poucos. Dão bronca na gente, pedimos desculpas. Pede alguma coisa, prometemos que iremos fazer. Simplesmente sorrimos e concordamos. Mas continuamos ali, com aquele homem das cavernas em stand by, prontos para destruir a harmonia do universo.
E como disse, isso vai indo desde o começo da nossa vida. Crescemos um pouco e vamos pro colégio odiar as meninas. Crescemos mais um pouco e as amamos. Depois simplesmente suportamos. Temos que que ir nos adaptando para cada novidade.
Eu estava conseguindo levar até que bem esse jogo e minha vida ia seguindo seu ritmo, até eu conhecer Silvia Renata.
Cheguei atrasado, claro, e lá estava ela com o sorriso no rosto.
- Qual é seu nome?
- Fábio.
- Hum, seu horário não era 11 horas?
- É... Mas você sabe como é o trânsito nessa cidade né?
- Sei... Espere um pouco.
Depois de meia hora lendo Contigo, ela volta.
- Vamos lá, Fábio?
Juro que só de escrever essa frase e lembrar dela a falando me dá vontade de chorar. Maldita Silvia Renata, a fisioterapeuta mais sanguinária que já conheci.
- Ih Fábio, tá fraquinho hein!
Pensamento: Fraquinho? Ô maldição de mulher, você colocou dois quilos numa perna que dói só com a força da gravidade!
- Hehe, é que eu fiquei com ela imobilizada por um tempo.
Ela passa mais um exercício e me deixa só, naquele retângulo com duas divisórias, aquele lugar é o porão do Dops para mim.
E volta a torturadora.
- Pra que time você torce?
Pensamento: nenhum pensamento, naquela hora a dor era tanta que não conseguia pensar.
- Aaaaah... São Paulo, eu torço pro São Paulo.
- Que bom, se não fosse são-paulino eu ia colocar carga extra.
Pensamento: Morfina! Eutanásia! Eu quero qualquer coisa! Acabe logo com isso!
E cada vez ela é mais cruel. Dor, dor e mais dor somados àquela conversa jogada fora. Sim, seu joelho também doeu ontem, S.R.. É, só faltam algumas sessões. Verdade, quem mora sozinho é obrigado a aprender a cozinhar.
- Por hoje é só! Tá liberado. Até amanhã, Fábio.
- Até amanhã!
Pensamento: Case comigo!

quarta-feira, 30 de julho de 2008

Fado tropical

Quem diria que de seu maravilhoso mundo, Alice discutia metaforicamente questões terrestres, mais especificamente questões sub-terrestres:

“Take some more tea,” the March Hare said to Alice, very earnestly.
“I’ve had nothing yet”, Alice replied in an offended tone, “so I can’t take more.”
“You mean you can’t take less,” said the Hatter: “it’s very easy to take more than nothing.”

Ah Alice, se Celso Amorim pudesse ao menos te ouvir; veria que não é a primeira vítima do cinismo de outrem. Mas no meio daquela confusão de interesses, que torna aquelas longas rodadas e todas aquelas discussões improdutivas tão patéticas, ninguém dá ouvido a ninguém. A frase da propaganda nazista “Uma mentira repetida mil vezes se torna verdade.” ilustrou bem as intenções dos países ricos. No fundo, a metrópole não admite rebeldia da colônia. Imagino os representantes comerciais dos EUA e UE, Susan Schwab e Jose Manuel Durão Barroso, numa conversa: “Que isso? Veja só Schwab, eles querem um acordo que os beneficiem!” “Haha...é realmente muita petulância, Durão.”

Agora todos tentam amenizar, inclusive Amorim, dizendo que todos perderam (alguns menos, outros mais) com a Rodada de Doha. Ora, não é preciso ser nenhum especialista em política externa para perceber que se os subsídios e os créditos agrícolas vão continuar; tarifas de exportação ou importação: nada vai mudar; barreiras fitossanitárias? cri...cri...cri ; etanol da cana-de-açúcar então...Enfim, os países pobres são os perdedores.

terça-feira, 29 de julho de 2008

Jornada Dupla

Depois do divórcio, as coisas ficaram cada vez mais confusas para ela. Havia agora um espaço livre em sua agenda que ela não sabia preencher. A princípio aquilo serviu-lhe de descanso, mas foi passageiro.
Tornou-se então uma viciada em trabalho – não de um dia pro outro, mas de maneira lenta e gradual, o que é ainda pior. Enfermeira atarefada como era, nunca tinha pausa em seu expediente. Nem por isso era necessário dobrá-lo, como fez. No primeiro momento, a chefia foi contra, mas ela não exigia nenhuma mudança no pagamento. E que chefe não aceitaria um acordo desses?
Apesar de dormir cada vez menos, voltava agora a se sentir feliz e descansada. Já voltava a pensar na família, no marido bem sucedido e nas crianças que foram ficar com ele. Sentindo-se tão bem, percebeu que já podia voltar ao estilo de vida normal. A chefia não aceitou, alegando que duas outras enfermeiras já haviam sido despedidas por causa dela.
O que se passou a seguir é que foi curioso. Em seu sono extremamente diminuto, passou a sonhar demasiadamente. Sonhos bons, ruins, muitos sem o menor sentido – como acontece com a maioria das pessoas. O problema é que trazia problemas do trabalho para casa e isso passara a impregnar seus sonhos – também de maneira lenta e gradual. Sonhava com coisas que haviam acontecido ou que ainda estavam para acontecer.Seu sono agora estava cheio de pacientes, cicatrizes, curativos...
Em pouco tempo aquilo passara a ser usual, até o dia em que o sonho deixou de parecer sonho. Não sabia mais se dormia ou estava acordada. Podia tomar todas as drogas do hospital para acordar, mas havia a possibilidade de que não estivesse dormindo. Acostumou-se com a situação: uma vida dupla. Se bem que não se tratava de uma bipolaridade, nem de nenhum distúrbio desse tipo. Estava mais para uma rotina dividida em duas história idênticas, um déjà vu permanente. Todas as histórias começavam com ela acordando e terminavam com ela indo dormir. Já não havia mais sonho para aliviar a vida, nem vida para aliviar o sonho.

segunda-feira, 28 de julho de 2008

Terminal

Na semana passada tive um reencontro diferente.
Já estou habituado a voltar para minha cidade e acabar encontrando amigos que não esperava encontrar; confesso que ando displicente com minhas amizades.
Mas o reencontro da semana passada foi algo mais forte. Não encontrei ninguém. Bom, na verdade até encontrei, mas era uma massa de pessoas desconhecidas. Me deparei com um pedaço de madeira fincado no chão - também conhecido como ponto de ônibus – no terminal de uma estação de metrô.
Parado ali, já desacostumado com a eterna espera pelo 4709 que por tantos quilômetros me levou, encontrei não só aquele pedaço de madeira, mas um turbilhão de lembranças.
Parecia que eu tinha recebido um novo par de olhos, e estes tinham o poder de me levar para o passado.
Ali eu comecei a sentir o sono por ter acordado tão cedo pra ir pro cursinho, a fome e o calor daquelas 13 horas da tarde. Lembrei e me segurei para não rir de tantas piadas que parado ali escutei de um amigo. Senti a mão da garota segurando na minha e quando olhei para seu rosto, ela reclamou que ônibus não chegava nunca. Aquilo me causou um estranhamento, porque ela sempre reclamava que o ônibus chegava e tínhamos que ir. Mas não estranhei só isso, a voz dela estava estranha.
* voltando aos olhos da realidade *
Percebi que não era a garota, era um senhor de boina. Respondi brevemente com um sorriso e fechei os olhos querendo voltar ao passado.
Quando abri os olhos, lá estava o senhor comendo seus pães de queijo.
Eu ainda sentia fome, mas o calor do horário do almoço foi substituído por uma fria garoa de começo de noite – o que torna tudo isso ainda mais cafona. O meu amigo foi substituído por uma moça esperta, a única que tinha um guarda-chuva naquele lugar, mas com certeza ela não faria piadas tão boas. A garota era aquele senhor de boina e, definitivamente, eu não tinha vontade de pegar na sua mão.

domingo, 27 de julho de 2008

Pensamentos Inacabados

Por Julia Formis Giglio

Dizem que não é necessário ter grande dom para se escrever uma crônica. Pois eu acho isso uma enorme mentira.
O cronista tem sempre um quê de mistério, revela gosto pelas piadas do dia-a-dia, faz de tudo uma boa história, acredita em cada palavra que diz, é fã de suas manias e espectador dos seus momentos de criatividade. Sem contar na pouca e/ou falsa modéstia.

-

Droga! Odeio quando a campainha toca e interrompe o fluxo de idéias, eles já são tão raros...
Ao menos dessa vez não foi inútil. Diferente dos inúmeros telefonemas anteriores, me assustaram, eram a cobrar, e agora é 1 da manhã, passada.

-

Enfim, voltando.
Confesso que li tudo o que já foi escrito antes dessa data, e que cada palavra me serviu de inspiração. Por que eu não sou uma pessoa de talento nato (visivelmente). Sabe quando você precisa de um empurrãozinho??
Na verdade, acho que escrever (crônicas) é igual andar de bicicleta. Se não fosse o seu pai pra colocar as rodinhas, ou te segurar por trás do banco no dia em que você resolve tentar sem apoio, você nunca teria aprendido.
Mas como diz o clichê, aprendeu uma vez, nunca mais esquece. Por isso não se desaprende a escrever. E por isso, também, eu resolvi tentar (mas, por enquanto, ainda tem alguém segurando o banquinho).
De qualquer forma, hoje o dia foi de poucas palavras, e eu não sei ao certo sobre o que escrever.
Sem grandes confraternizações,
a casa está pacata e fria (gélida, eu diria),
os amigos não apareceram,
são apenas compromissos profissionais,
e falsidade.

É tão difícil saber sobe o que falar sem ser chata, redundante ou repetitiva. É legal ser diferente, eu não diria inovadora, por que seria muita pretensão.
Mas porque não informativa. Não, não, muito técnico.
Quem sabe, inédita. Um pouco audacioso da minha parte.
Acho que posso querer ser única. Ou própria. É, acho que sim.


Mas de que isso adianta? As palavras são sempre as mesmas, a ordem deve ser sempre direta e as idéias objetivas.
Quero ser prolixa, falar em círculos e não concluir minhas idéias.
Cansei, isso não é pra mim...

sábado, 26 de julho de 2008

Vincente (1/?)

Já era noite avançada e Vincente ainda não conseguira dormir. Era um daqueles momentos em que você não quer pensar em nada: paradoxalmente, pensa eu tudo. Lembrou-se do que uma atriz dissera uma vez: “Se pudesse vender todos os pensamentos que tenho no chuveiro, ficaria rica.” Era, mais ou menos, assim. Às vezes, antes do sono, realizava raciocínios fantásticos, maquinava planos que poderiam acabar com a fome no mundo, descobria meios para pôr fim a violência, apertava ao peito mais humanidades do que Cristo, fazia em segredo filosofias que nenhum Kant escreveu. Lera certa vez: “Se meu travesseiro se transformasse numa impressora...”. Seria uma solução.

Acordou atrasado. Precisava de uma hora entre o despertar e o seu trabalho; tinha uns quarenta minutos. O banho teria de ficar pra noite, estava frio mesmo. Colocou a água pra ferver: o café era imprescindível. Deixar de tomá-lo significava sacrificar um dia inteiro, perambulando por aí feito um zumbi entre o sono e a vigília, sem se sentir realmente acordado. Café com pão e manteiga, leite, também era preciso cálcio. Mais café. Cigarro na sacada. Agora estava preparado. Faltava apenas escovar os dentes. Banheiro, olhada no espelho, armário, escova, água, pasta. Pasta! O tubo todo retorcido anunciava seu companheiro da manhã: o mau-hálito. No meio do caminho podia até comprar uma balinha ou um chiclete, mas o pouco de pasta que restava não disfarçou muito bem o amarelo do café e a lembrança do cigarro deixava vestígios, quanto a isso sem grandes lamentos, não seria o último mesmo.

A caminho do trabalho, uma parada na banca pra balinha. Parada de emergência. Se bem que hoje não era ele mesmo quem iria abrir a biblioteca; tudo bem chegar um pouco atrasado. Olho no balcão a escolher...uma olhada inconsciente nas revistas...Acabara de chegar sua revista semanal! O dinheiro só dava pra uma ou outra, escolha de sofia: o bafo ou a revista. “A política, economia e cultura são mais importantes que um leve mau-hálito. Não cederei ao apelo do marketing incutido em minha cabeça desde criança que as pessoas com mau-hálito são desprezíveis, devendo todas se entupirem de gomas e balas.” Pensou com Jiminy Cricket, num impulso comunista. A revista.

Chegou no trabalho. Vincente era guarda-livros na biblioteca municipal. Sabia que não era grande coisa, mas os livros davam um apoio. Cumpridas as burocracias, desculpas pelo atraso pedidas: ao trabalho. No dia anterior, apesar de ter ficado até tarde, não tinha conseguido arrumar uns arquivos. Retomou o trabalho.

Apesar do volume dos papéis o trabalho estava tranqüilo. Disfarçava bem seu problema (o bafo), quando as pessoas perguntavam algo, Vincente respondia meio de lado, dava pra contornar. Já era quase hora do almoço também, dava pra passar numa farmácia e resolver (a escova trazia consigo pra depois do almoço). De repente entra na biblioteca uma amiga sua. Uma daquelas do tempo colegial. Bonita. Pela qual guardava uma sensação bandeiriana de: aquela que poderia ter sido e que não foi.

Eram bem amigos no tempo de escola, mas depois do último ano, vestibular e cada um vai pra um lado, não se viam quase nunca. (Vincente não se dera bem nas provas, mas também não ligava muito pra faculdade, deixou os pais e veio morar sozinho na capital na promessa de fazer cursinho e trabalhar. Trabalhar ele cumpriu, mas o cursinho adiava. Já Débora fazia letras.) Vincente já sentiu o peso da mão de Murphy na situação: nunca via a menina, quando via não podia falar com ela direito (o bafo). Ela muito sorridente veio falar com ele, perguntou e contou as novidades, conversa vai e conversa vem (o pobre sempre a falar pra baixo, ou com a mão na frente da boca disfarçando...).
- Ô Vincente, cê sabe se tem aí o Cheiro do Ralo?
- Quê? Quê ralo? Será que ela ta tirando sarro por causa do bafo? Pensou.
- O Cheiro do Ralo, Vincente.
- O Débora, não tô sentindo cheiro nenhum não.
A menina riu:
- Cê tá parecendo o cara do filme: “Esse cheiro não é meu não. É do ralo, olha.” Disse imitando a voz de Lourenço (o protagonista).
Vincente deu um sorriso - amarelo:
- Ah tá. Entendi. O filme, sei.
- Então, é baseado num livro. O autor é o cara que faz o segurança, sabe? Já assistiu?
Ele já tinha assistido, mas disse que não, queria mudar de assunto.
- Ah não acredito. Se você quiser a gente pode assistir. To com ele em casa ainda. Já assisti ontem mas assisto de novo, é bem legal. O Selton Mello tá muito fera. Faz tempo que a gente não conversa e eu também não agüento mais minha mãe perguntar de você ! Os dois riram, Vincente meio sem graça, ela, risada sincera.

Os dois conversaram mais um pouco, a menina até se esqueceu do livro, e combinaram o filme no apartamento dela à noite. Ela não morava longe dele mesmo, eram uns vinte minutos a pé.

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Sóbrio

Nunca vi tanta gente bêbada dando entrevista. É um sem nome de perguntas do tipo “Você bebeu?”, ou “Você acha que pode dirigir assim?”. Aí o camarada faz uma palhaçada e o apresentador da aquela risadinha de “Ai que saudade dos meus vinte e poucos anos”. Os telejornais, aliás, nunca foram tão engraçados. E tão monótonos (lei seca – Dantas – lei seca).
A bebida ocupa um lugar privilegiado na escala de importância dos brasileiros. Por isso mesmo a falta da bebida despertou em todos um direito cívico que andava meio de lado – quem dera as pessoas se importassem tanto com a corrupção.
É lógico que a maioria sabe lidar com o álcool. Mas assim é viver em sociedade, temos que nos livrar de alguns prazeres por causa de uma ou outra ovelha negra.
Todo mundo sempre reclama de uma situação fora de controle, mas quando o governo pede a participação popular, a lei é criticada. Que espécie de democracia é essa que o povo está esperando?. Os Estados Unidos há pouco tempo atrás processaram dezenas de empresas de cigarro. Isso porque quem mais tarde tinha que pagar pelo estrago do produto eram os hospitais públicos. Agora, quando o governo brasileiro tenta algo semelhante, todo mundo torce o nariz. Chegaram a falar que essa lei seca é coisa de país nórdico, que ela não tem nada a ver com o Brasil.
Rigorosa ou não, as pessoas têm que entender a essência da lei. A questão de quantos miligramas pode ou não pode é irrelevante. No fundo, muita gente queria sua própria lei com um critério bem brando para nunca ser pego.
Seguindo a programação, o telejornal mostra agora um acidente causado por um motorista bêbado. Desta vez, a notícia vem acompanhada por um olhar de reprovação do apresentador.
Nenhum problema em beber. Essa cultura existe em grande parte do mundo, inclusive em países de primeiríssimo mundo. O que falta é a cultura de responsabilidade. Sem essa de sou brahmeiro, trabalho o dia inteiro e mereço beber e fazer o que eu quiser. Os outros não têm nada a ver com isso.

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Sobre os meus 103 anos

Eu tenho um idoso vivendo dentro de mim – sem pensar besteiras, por favor.
Gosto de música velha; não somente os clássicos, o que é normal para as pessoas da minha idade biológica, gosto daquelas músicas que são o único sucesso daquela banda que ninguém sabe onde foi parar: os P.O. Box e LS Jack de cada década.
Entre filmes, acho que nem preciso explicar muito. Grease é com certeza uma das coisas mais bela que já vi.
Eu conheço um cara que também é meio assim. Ele deve ser um ano mais novo do que eu, mas acusa uma surdez parcial e dor nas costas – resultado dos muitos anos que viveu, claro.
Eu não tenho surdez, nem dor nas costas. Tenho dor nas juntas.
Temos alguns pensamentos conservadores, mas somos idosos modernos. Sabemos adaptar o conservadorismo de acordo com o contexto atual.
Tenho saudade de épocas que não vivi. Coisas que não vi. Lugares que não existem mais.
Talvez seja um pouco de loucura ou simplesmente o resultado de uma época em que as tradições e os valores vão se perdendo aos poucos.
Tenho 103 anos, gosto de Roberto Carlos e me chamo Phábio.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Obituário

Também prestarei homenagem à Dolores Gonçalves Costa, mais pela atriz que pelo deboche. Lembro de uma entrevista sua, feita ano passado, saiu como reportagem especial no caderno Mais, nela descobri que Dercy era bem mais que xingamentos naquele estilo desbocado, aliás, sobre eles dizia: “Palavrão é corrupção, é tratar mal as pessoas, desonestidade etc.” Sábia Dolores; já escreveu Ruy Castro: “No ano de seu nascimento, 1905, o presidente da República era Rodrigues Alves. Seguiram-se 24 presidentes, três golpes de Estado, duas longas ditaduras, um suicídio, uma vacância por morte e um impeachment.”É mesmo bastante tempo.

Descobri ainda uma irmã sua, devem ter sido separadas no nascimento, não é possível. Sabem Giulietta Masina? Atriz e esposa do Fellini. Então:






Dercy é a com as plumas. (imprescindível distinção)
Seguindo viagem através do rio Aqueronte também está o pai da Regina Casé (Geraldo Casé). Triste, não é? Nem quando o sujeito morre retoma sua personalidade. Será sempre o pai da fulana, ainda mais (triste) se a fulana for Regina Casé. No tempo do Asdrúbal trouxe o trombone tudo bem, mas ultimamente, com programas tipo Muvuca ou aqueles na periferia, não dá né. Ela ainda atribuiu tudo que fez ao pai. Pobre, deve ter remexido até no caixão.

Essa semana a barca de Caronte vai cheia. A cada dia que ligava a TV era um assassínio cometido pela polícia no Rio (e no Brasil); às vezes eu até pensava que a programação estava sendo reprisada. Tal situação me lembrou aquela música do Chico: “Acorda amor”, “Minha nossa santa criatura...Chame o ladrão”. Que coisa, a Bossa comemorando seus 50 anos, no entanto, é outro samba que segue ao fundo; nada de praia, barquinho ou garotas pelo calçadão. Sei que o Rio de Janeiro não é só aquele dos telejornais ou novelas; que a visão que temos é alienada e esteriotipada etc; mas não é à toa que isso ocorre, não é verdade?

terça-feira, 22 de julho de 2008

Um segundo, segundo Aurélio

Por ocasião da morte de Dercy Gonçalves, vai aqui uma pequena história sobre o tempo.
O filho entrou no carro e, olhando pro relógio, perguntou:
- Pai, quanto tempo dura um segundo?
O homem, que perdera o horário e se atrasara ainda mais com a fila de carros em frente à escola, parou o carro. Pelo azul de suas veias no vermelho de sua cara dava pra ver que estava nervoso:
-Um segundo, já que você quer saber, é o tempo que demora pra me levarem esse carro. Essa lata velha que eu ainda nem terminei de pagar. Uma Ferrari vai de 0 a 100 km em alguns segundos, e essa carroça, não. É isso que você quer saber? Melhor ainda, um segundo de loucura foi o que me levou a me casar com a bruxa da sua mãe. Agora, alguns segundos é o tempo que ela me deixa ver você. Aliás, apenas o relógio ela me deixou. Ainda bem que não era de ouro. Se fosse de ouro teria que contar os segundos mentalmente pra saber quando posso te visitar. Por falar em ouro, não sei se já te informaram, mas tempo é dinheiro. E você, meu caro, me custa centenas de milhares de segundos. Hoje em dia você pode até pensar que é muito rico com todos esses seus segundos. Mas eles acabam mais rápido do que você pensa, viu? Por isso mesmo chamam-se segundos, os primeiros sempre acabam antes que você perceba. Os segundos, veja você, duram um tempo que ninguém sabe quanto é, mas que acaba. Assim como acabam os tempos dentro desse tempo.
Na verdade, isso foi o que ele pensou. O que ele falou foi isso:
- Um segundo? Aqui está. Acabou. Aqui está. Acabou. Aqui está. Acabou.
Esse segundo, como muitos outros, durou por toda a vida do menino. Mas nem por isso deixou de ser um segundo.

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Adeus Dercy

Não esconderei que recebi a notícia com certo choque. Já estava muito nítido para mim que a Dercy tinha achado uma forma de conseguir a imortalidade, mas foi uma pneumonia que conseguiu derrubar essa mulher que viveu mais de um século.
O que não foi surpresa foi saber que uma das últimas coisas que essa senhora fez foi ir a um bingo clandestino. Imagino-a nesse bingo, mesmo com as desvantagens da idade avançada e ainda doente, proferindo palavrões a cada número sorteado que não lhe alegrasse.
Eu não faço planos para viver cem anos, na verdade acho que uns cinqüenta anos já sejam suficientes. Vamos considerar que com uns quatro, cinco anos de idade a gente já consiga ter algum entendimento que existimos. Então ficamos uns dez anos sem fazer nada. Depois disso, encontramos algumas “preocupações” que duram um período de três a cinco anos. Pronto, ai sim começa uma vida mais plena, com mais responsabilidade - claro que isso não serve para todos.
Se for assim, passam uns dezoito anos em que simplesmente estamos por ai, sem muita diferença. Após isso começamos a fazer parte do mundo de forma efetiva, se fizermos isso até os cinqüenta, serão trinta e dois anos dessa vida. Pra quem ficou dezoito sem fazer nada, parece ser suficiente.
Tem algumas pessoas que precisam, sim, viver mais que isso, mas são exceções que têm papel mais importante do que o resto dos mortais.
Eu mesmo já estarei cansado de tudo isso daqui a trinta anos. Estarei esperando minha pneumonia.

sábado, 19 de julho de 2008

A falta que ela me faz *

Nos primeiros dias, a sensação de autonomia e liberdade garantia uma satisfação quase plena. Como se eu me bastasse. Depender de alguém era coisa para os fracos. O fato de não ter alguém ali cuidando do que você faz, ou melhor, deixou de fazer, era os grilhões arrebentando-se.

Mas o tempo passou. A filosofia que pensei pra disfarçar a falta dela já estava desgastada. Gostava de pensar que limpando minha casa, minha própria sujeira era como se estivesse realizando uma limpeza em mim mesmo (profunda essa filosofia, não?), como se fizesse uma limpeza em minha própria personalidade. Não que eu ache indigno o serviço das faxineiras e precisasse de algo reconfortante por realizar um trabalho degradante. Nem pensar. Mas se se parar pra pensar, isso faz um pouco de sentido. Acho que todos deveriam limpar as próprias sujeiras, querendo ou não, aquilo ali era um pouco de você (existem mais sujeiras além dessa que você está pensando...).

* Do título

Tirei esse título de uma crônica do Fernando Sabino, não só o título, na verdade; mas minha crônica - bem magra por sinal: é o trabalho árduo da escolha de palavras que resumissem frases inteiras, muita objetividade e concisão – não chega a ser um plágio a de Sabino. Esta ainda dá nome ao livro do autor, “A falta que ela me faz”, você pensa que vai ser uma pieguice deslavada, aí... Muito boa a crônica dele, conta uma vez que resolveu dar férias pra empregada e passadas três semanas a casa era um lugar inóspito.
“Os jornais continuavam chegando e já havia jornal velho para todo lado, sem que eu soubesse como pôr a funcionar o mecanismo que os fazia desaparecer.” Muito bom!

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Logo ao lado

Quando alguém morre e aparece nos jornais – como no caso da menina Isabela, ou dos meninos da Providência- a gente lembra que existe violência. A imprensa alarma aos berros o fim do mundo, e as pessoas param para escutar. “Oh não, ela existe mesmo, fechem as janelas e as portas para ela não entrar”. É inútil. Já está nas veias e correndo pelo corpo todo.
Violência, esclarecendo, não é só a morte de uma pessoa, o espancamento de um inocente. Tudo que foge àquilo que consideramos certo nos violenta. Um trabalhador que não tem comida para dar ao filho, isso não é violento? A violência está aí. Desde o ar poluído que respiramos às mentiras que expiramos.
Um exemplo que me deram uma vez, “se a morte de um estranho por fome não te interessa, por que ele tem que se importar com a sua morte?”. Não tem. Já dizia uma música: “para quem vive na guerra, a paz nunca existiu”. Não que não haja nada de bom no mundo, obvio que há, porém as coisas ruins não chamam atenção aos nossos olhos. Pelo menos quando não é com a gente, ou com um dos nossos.
O que se tem ao final de uma vida? Algumas histórias para contar e o luto de alguns dias? A indignação, logo dissolvida em um grande balde de conformismo?
As vezes nosso distanciamento desses fatos trágicos nos impede de ver o que é uma vida. Memória, sonhos, esperanças, tristezas, ilusões, a infância, a adolescência, a fase adulta, a velhice, ter um filho, plantar uma árvore, escrever um livro.
Um corpo caído não é nada comparado a dois corpos. Três corpos. Os batimentos cardíacos abaixam, perde-se o calor da pele, e só. O sistema é o mesmo para todos. De suas diferenças que o tornavam especiais para alguns, sobrou apenas a similaridade no modo de morrer. Não devia ser ninguém de importante, nada a acrescentar ou a diminuir para a humanidade. Pelo menos, assim se presume. E pra frente com o Carnaval!

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Estiagem

Acabou a brincadeira.
Antes era “quem bebeu, bebeu; quem não bebeu, chame o garçom”.
Agora é “quem bebeu chame um táxi; quem não bebeu, pegue minhas chaves, por favor”.
A lei batizada de “Lei Seca” por alguém que desconheço, começou com tudo e abalando as estruturas das noitadas. Quem for pego com uma determinada dosagem alcoólica no sangue, que com a lei anterior resultava em uma multinha, vai pra cana.
Pode parecer irônico, mas a cana talvez seja a única solução para o problema das mortes no trânsito. Não que antes fosse uma grande festa onde todos dançavam pelas ruas, embalados pelos versos ‘beber, cair e pilotar / beber, cair e pilotar / beber cair e pilotar’, mas havia aquela aura de impunidade, quebrada com a nova lei.
Resta saber se essa lei vai pegar ou não, a tal sina de todas as leis nesse país.
Além dessa pós-aprovação da lei para que ela não vá parar com as outras leis que saem de balão e se perdem por aí, essa lei tem aquelas famosas brechas. Tem a diferença entre a infração de trânsito e o crime penal. Tem toda aquela discussão sobre cada pessoa ter uma tolerância ao álcool diferente das outras.
Na verdade pouco disso importa. A conscientização, sim, é realmente necessária.
Não será em todos os cantos do país que haverá alguém para fiscalizar como anda o bafo dos motoristas.

Retratos

I

Estava comendo alguma coisa num lugar por aí, por esses dias. Já era noite. Entrou um daqueles meninos que vendem coisas. Era bem magro e descalço, meio raquítico e anêmico, olhos fundos: deve ter faltado alguma vitamina essencial para seu desenvolvimento pleno. Olhou às pessoas ao redor. Devia estar cansado, nem foi de mesa em mesa oferecer o que vendia. Sentou-se perto de mim, perguntou: “Compra um moço?” me mostrando os imãs de geladeira. Reparei, eles tinham formas de frutas, com carinhas, braços e pernas. Alguns até sorriam. Outros, talvez por descuido do fabricante, ficaram meio sem expressão, sem graça. Enquanto a maioria se exibia de frente e sorrisos, um estava de costas. Esse era esquisito; a maioria pelo menos lembrava a fruta que representavam, esse não, não tinha uma forma definida. Ás vezes parecia uma mistura de todos; outras nenhum deles. Peguei-o na mão. A cabeça pendia pra baixo, o olhar mirava um ponto qualquer, o sorriso dava um ar mais melancólico ainda, como se sorrisse por não saber o que mais fazer. Era o único que sabia o que acontecia. Comprei-o.

“Uma parte de mim
é todo mundo;
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.”

Ferreira Gullar

II

Outra dia, andava pela calçada e logo a frente reparei um rapaz revirando uma lixeira. Era um daqueles catadores, separava o lixo para vender pra reciclagem talvez. Passa um carro, o vidro desce (vidro elétrico), escuto a voz da mulher: “Viu, vê se não deixa tudo bagunçado quando você terminar. Não quero lixo espalhado por aí.” O rapaz abaixa a cerviz: resignado e obediente.


Quadro

Se soubesse o que fazer
eu já o teria feito.
Se hoje espero, não é por resignação ou conformismo;
é porque acredito.
No meu silêncio não há lamúrias ou abafamentos.
Mastigo tudo lentamente; na garganta engasgada
o doce sabor do fel mistura-se ao sangue
dessas feridas.
Sinto próximo o momento do escarro.


Olhos fitos na parede nua,
a imaginar a moldura dos crimes que cometerei
pra aliviar toda essa cólera dentro de mim e de outros.
E os pendurar na parede a fim de aviso
aos que virão.

terça-feira, 15 de julho de 2008

Réplica

Aproveitando as eleições que estão logo ali, gostaria de responder às acusações envolvendo minha gestão. Gostaria de pedir às vozes em minha cabeça que cessem as críticas.
É sempre assim, eu vou dormir e elas aparecem. Eu dou um passo em falso e elas reaparecem. Poxa vida, nos bons momentos elas não me apóiam. Puro oportunismo. Nada mais conveniente do que essas vozes dizerem que não sei o que estou fazendo nos momentos ruins.
Devíamos nos unir e lutar por um bem maior: eu. No final das contas sou sempre eu que decido mesmo. Nem às vozes aliadas eu dou muito ouvido. Esse esquema funcionou bem durante todos esses anos da minha vida.
Por esse bem maior, eu proponho a vocês uma trégua. As vozes boas param e vocês também. Imaginem só, uma boa noite de sono. Tranqüilidade de pensamento. Depois, quando eu julgar o momento mais oportuno, vocês podem voltar com força total.
Por ora, isso já seria de bom tamanho. Assim continuarei com meu trabalho, que como já disse, tem sido muito eficiente até o momento.