quarta-feira, 9 de setembro de 2009

algemas

você pode me dizer o que é pior que a agonia da impossibilidade.
talvez o impossível seja a sombra das dores que tomam nossas forças. o soldado que não pode salvar o companheiro, a mãe que o filho partir, os amigos que sentem seus laços desmancharem, os lábios que você não pode beijar.

desespero.

tão distante, mas tão perto fisicamente. a oportunidade em seus braços, te apertando com força enquanto entrega seus últimos suspiros. ela morre, você enterra e vela. chora em luto enquanto a culpa prefere sufocar a consolar-te.

você pode me dizer o que é pior que a agonia da impossibilidade.

talvez o impossível tenha criado a esperança apenas para aliviar momentaneamente a ânsia de quem nada pode. a chama que não se pode apagar, a doença que não se pode curar, a fome que não dá para saciar, os gemidos que não vão se calar.

aflição.

não se pode estender a mão para o outro enquanto ela está algema à outra. não se pode sequer vigiar com os olhos vendados. não se pode carregar ninguém com um fardo nas costas. não se pode correr para alguém com os tornozelos acorrentados.

você pode me dizer o que é pior que a agonia da impossibilidade, mas não pode abafar os meus gritos desesperados nessa impotência. nem cessar a aflição de ver a pessoa que você menos espera lhe causando tal agonia.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Ontem, três meninos brincavam no parque
- que saudade da infância! -

quem ouvia as gargalhadas invejava
- que liberdade! -

brincavam à meia-noite
- que pais compreensíveis, brincadeira não tem hora -

pés descalços
- por situação (e condição) -

na rua, mexiam com todos
- que alegria! -

e já tinham até consciência,
respeitadores da lei anti-fumo,
tragavam seu cigarro no ambiente aberto.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Tempos de Imperialismo

Hoje, teve início a ofensiva do Verão sobre o Inverno. Em pleno Julho, maior fortaleza dos agasalhos, onde eles transitam despreocupados, certos das baixas temperaturas, mesmo sob um Sol sem nuvens cujas ondas e partículas apenas iluminam, sem aquecer; como dizia, em pleno Julho, o senhor Inverno é atacado. Derretido. Apolo, no início dessa estação, fingia-se fraco e inofensivo (cientistas até desmentiam-se envergonhados a calúnia sobre os raios ultra-violetas). O senhor Inverno chegou no 21 de Junho e se acomodou, como havia acordado a 3ª Conferência do Tempo. Mas eis que o impiedoso Verão, precedido por Apolo e também por sua poderosa arma, o Efeito Estufa, avança sobre o companheiro gelado. Cidadãos assistem atônitos e perplexos a batalha climática, confusos se vão à piscina ou aos cobertores, entre o suco refrescante e o chocolate quente, entre a feijoada e a saladinha. Seus cérebros começam a sentir o calor inesperado e passam a escrever coisas insensatas.

Bauru, 22 de Julho. 47,5° C (na sombra)



..

terça-feira, 21 de julho de 2009

Foi uma vez que eu estava esperando ônibus para ir à faculdade. Esperava há mais de vinte minutos e quando cheguei outro sujeito já estava lá. Vi que ele estava meio inquieto, andava de um lado pro outro e quando um ônibus parava no ponto ele quase se jogava na frente (não necessariamente nessa ordem). Eu pensei que o cara fosse meio louco e fiquei na minha. Até que passou o meu ônibus e ele se jogou na frente. A pancada não foi tão forte, afinal o ônibus vinha desacelerando, mas deu pra machucar um bocado o sujeito. Aí foi aquele auê. A ambulância veio e quando um paramédico perguntou se alguém ali o conhecia, não sei por que eu disse que sim e acabei indo com ele pro hospital. Mais pra alguém levá-lo para casa depois, as escoriações não iriam exigir tamanhos cuidados. Enfim, acabei levando o sujeito pra casa (chamei um táxi...). Ele me confessou o por que daquilo tudo. Ficara sabendo da traição da esposa e queria se matar. E o cara estava perturbadíssimo mesmo, não só por tentar se matar, mas por tentar isso se jogando na frente de um ônibus, num ponto de parada de ônibus. Ele contou que se jogaria na frente de todos, pelo menos um não pararia. E não seria necessário outro. Ele disse que assim colocava a vida nas mãos do destino mesmo, de verdade. E que apenas através de alguma intervenção – por exemplo um passageiro precisando descer no ponto e consequentemente fazendo o ônibus parar – a vida dele continuaria. Se precisasse seguir o fluxo natural, o fluxo natural era o ônibus não parar, a vida dele acabaria. Ele não disse e eu também não quis perguntar, mas quantas vezes será ele pretendia testar o destino? No fim achei até interessante esse pensamento dele. Mas o que eu ia dizer, é que depois do hospital acabamos num bar. Bebemos um monte e depois eu deixei o Almir na casa dele num dos subúrbios daqui. Encontrei-o ainda algumas vezes depois do incidente, conversamos, ele estava melhor e havia perdoado a mulher. Faz um bom tempo que não o vejo.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

anáquiro

sinto que está acabando. faz quanto tempo? comemoramos alguma data há uns dois meses... desculpe, estou tão embriagado enquanto você me encara - também já sabendo que é o fim. não consigo lembrar de nada nesse momento.

você me pergunta o que iremos fazer e com as palavras uma lágrima escorre pelo seu rosto. sinto que devo interromper sua queda com uma mão enquanto a outra ergue suavemente seu rosto pelo queixo para que nossos olhos se encontrem e decidam entre si a resposta para a sua pergunta. com a coragem que falta em nossa fala, encontram um caminho que podemos seguir juntos e fazem um pacto, selado por meus braços que trazem você pra dentro deles e te conforta entre os soluços.

hoje eu sei que tudo acabou quando deixei aquela lágrima escorrer até encontrar o canto de sua boca.

e minhas mãos começaram a me incomodar. já não sabia o que fazer com elas enquanto você aguardava a minha resposta durante aquele instante que pareceu durar por anos. percebo que você não sabe para onde olhar enquanto esperava e começa a olhar para as minhas mãos que guardo nos bolsos de forma nervosa.

o movimento faz você olhar para mim com uma firmeza no rosto, cortado pelo rastro da primeira lágrima, que logo desmorona em mais pranto. de alguma forma você tinha encontrado a resposta em meu rosto.

você me abraça com uma desesperada força que eu não conhecia. eu fico imóvel, com as mãos ainda no bolso, já carregando essa frieza que me acompanha desde então. minha imobilidade acaba quando percebo que você vai se afastar e te seguro ali por mais um momento. com um braço na cintura e outro em seu pescoço. sussurro em seu ouvido novas promessas que não são as respostas que procura. antes de me deixar sozinho ali sentado, o último - e talvez o mais verdadeiro - beijo.

instantes depois, outro par de olhos expulsa lágrimas, que escorregam até encontar as suas em minha camisa borrada por sua maquiagem.

meses passaram e aqui estou novamente pensando em tudo o que aconteceu. preciso tirar essa angústia de mim. percebo que as garrafas vazias de nada valeram. preciso fazer isso de outra forma.

procuro loucamente pelo quarto um caderno.

terça-feira, 30 de junho de 2009

patofagia

procuro loucamente pelo quarto um caderno para escrever algumas palavras. com a caneta na mão, não encontro.

o que acho é esse pedaço de papel, tão fragmentado quanto estão agora as ideias que tinha sobre o que escrever aqui. paro e tento entender se queria passar essas palavras para o papel, tentando me comunicar com alguém, ou se é apenas mais uma vez que escrevo por esse vício crônico de colocar os meus berros no papel e depois guardá-los na gaveta com canetas sem carga e maços amassados.

os pensamentos que não fluem me fazem colocar essa maldita música que me joga na cara tantas verdades. minha mão caminha sozinha para o telefone procurando o número dela na memória. enquanto a ligação chama, ela deve estar dormindo pela demora para atender, sinto o medo do qual fujo ao guardar minhas vontades na gaveta.

e ela atende dizendo o meu nome.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

11.10

quero saber onde está aquele sorriso que você costumava deixar em meu rosto. aquele seu cheiro que grudava em minha camisa. aquela sua existência paralela em meus pensamentos.

quero saber onde foi parar aqueles sonhos que tivemos. aqueles planos que traçamos. aqueles momento que vivemos.

quero saber o que vou fazer sem aquela certeza de te ver numa noite de sexta. quero saber o que fazer sem aquela incerteza do que você acharia do meu novo corte de cabelo. sem aquela auto-cobrança de ser merecedor de dividir os dias contigo.

quero saber onde posso te encontrar. se você está atrás de mim em minhas lembranças. se você está ao meu lado na fotografia do porta-retrato. se você está na minha frente para que eu possa dizer, ao menos mais uma vez, o quanto preciso de você.

domingo, 21 de junho de 2009

bailarina prisioneira

sabe aquelas 'paixões' por pessoas desconhecidas que encontramos de vez em quando?

a minha é a bailarina prisioneira.

toda terça e quinta-feira é dia de encontrá-la, sempre sorrindo atrás do portão que a separa daquele mundo estranho dos primeiros minutos de fim do horário comercial. pessoas correndo, ligando para namorados, amigos, amantes. pessoas com fome, pessoas sorrindo, pessoas planejando o que fazer nas horas que lhe restam do dia. pessoas sozinhas com a sinfonia de buzinas ao fundo.

e a bailarina parecendo tão inabalável ali com seu sorriso. o cabelo ainda preso e sapatilhas na mão. imagino como seria a sua voz ou a sua risada com o cabelo solto, caindo sobre os ombros naquela luz do sol de fim de tarde que parece procurá-la.

nem cogito a hipótese de falar com ela. prefiro que continue atrás das grades daquele portão e do meu pensamento. e sempre com o sorriso no rosto.

sábado, 20 de junho de 2009

sobre jardins e lixos

Alan estava cansado. Queria olhar pela janela, mas sabia que a realidade por trás daquele vidro embaçado não iria agradar.
Não aguentou e deu uma leve puxada na cortina. Corre lentamente os olhos pelo gramado e lá estava ele novamente: o lixo. O problema do sujeito era que esse lixo não lhe pertencia, por algum motivo outros traziam os lixos deles para seu jardim.
As pessoas que ali passavam tinham como primeira imagem aqueles sacos de material em decomposição, o jardim de Alan não era sequer olhado pelos transeuntes. Ele ia até lá quando o Sol já não era mais o seu holofote natural, tirava aquele lixo dali, limpava o churume que corroia sua calçada e regava seu gramado.
No dia seguinte lá estava o lixo novamente e Alan já não agüenta mais isso. Por que as pessoas tinham que trazer mais lixo para alguém que já tem o seu? Por que cada um não cuida de seu lixo? Você produziu o seu lixo, por que eu teria que ficar com ele na minha porta?
A solução para Alan parece ser simples. Seu jardim não ficará mais à vista das pessoas. Irá erguer ali um muro alto, que esconda tudo dos outros. Não mais verão jardim ou lixo.
E Alan não terá que tratar com a podridão dos outros.

sábado, 13 de junho de 2009

II

só percebo que errei o caminho quando me encontro sozinho e só me acho novamente ao fugir dessa sombra que me persegue. essa sombra passada que tem minha forma, mas não sou eu. que tem minha voz, mas não sou eu. não sou eu.
rompo com ela ao cortar os punhos e me livrar dessas algemas. o sentimento de liberdade é o anestésico para o cortes.
vejo frases curtas entrecortadas pelos meus pensamentos. e pela voz de bethânia que rasga a noite. vejo garrafas vazias. vejo os olhos pesados no espelho. esses olhos não são meus.
e me deito nessa cama de bitucas. e vejo as frases curtas com muitos pontos. muitos pontos e poucos finais.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

cruzeiro do sul

me pega pela mão e me mostra caminho de volta pro teu colo. sinto falta da segurança que me passava ao cobrar atitudes de 'gente grande' que, até então, eu não saberia ser capaz de ter. tinha a certeza de conseguir o que pedia.

deito na minha cama e sinto seu cheiro no travesseiro. saio como animal caçador atrás de ti pela noite afora. talvez essa busca em minha mente seja o que algumas pessoas chamam de sonho - ou alucinação.

tenho delírios por dias seguidos mas o relógio não se move.

preciso te reencontrar para encontrar o meu caminho no brilho de seus olhos. e ali me perco. e ali me acho. e ali eu cedo. e ali eu caio.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Sacrifício

- E aí Norberto, como vai?
- Tudo bem. E com você?
- Bem, também.
- O que conta de bom?
- Ah rapaz, estou escrevendo minha biografia.
- Nossa que bacana. Mas sua vida é normal, não é Edson? Quero dizer...essas personalidades que tem essas coisas, não é?
- É, então...cheguei ontem a mais ou menos hoje, escrevi quase nada e não tenho o quê escrever.
- A gente só serve pra isso quando morre. Cê sabe que outro dia eu tava lendo o obituário do seu José, aquele do clube, não fez porra nenhuma a vida inteira, mas o texto me deixou comovido, chorei com o texto o que eu não chorei pela morte do coitado! Hahaha

Edson ficou pensativo. Observou um ônibus que vinha em alta velocidade. Olhou para Norberto e empurrou-o na rua.
Assim ganhamos os dois.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Vocação

Que inveja eu tenho do florista. Sujar as mãos - e até as unhas - de terra, não me importariam. Terra sai fácil, com água corrente mesmo. A tinta mancha. Agarra-se à pele. É um quê fazer pra tirar. E as flores você não precisa explicar pra vender. Descrever-lhes as qualidades: esse é um autêntico lírio, da família das Liliáceas, encantando as pessoas desde Confucio; e bendito desde Cristo, nas palavras de São Matheus "Olhai os lírios do campo; eles não trabalham nem tecem; no entanto eu vos digo: mesmo Salomão, em toda sua glória, não se vestiu como um deles". Quem não quisesse comprar, estúpido que fosse. Ah e eu não teria que ficar lendo poesias pra agüentar o expediente. Talvez apenas O guardador de rebanhos, mas só para lembrar delas e largar o livro. E eu leria no livro e não no computador, assim quando eu fosse deitá-lo ao lado, realmente eu o deitasse ao lado. Não clicar num X que faz desaparecer o que vejo na tela (por que o X será hein?). Os outros itens até que lembram o que causam, digo a janela ficar maior ou menor: tem duas janelinhas, se bem que do mesmo tamanho...Bom, mas não serei ingrato ao computador já que me sirvo dele, agora. Além do que, numa floricultura, eu não me perderia nessas divagações estúpidas que tanto me comprazem a inteligência. Eu não precisaria me sentir inteligente. Ficaria lá, escravo dos sentidos.

domingo, 24 de maio de 2009

Na saída do restaurante, uma mulher quase deitada pede esmolas. “Não tenho dinheiro, eu marco nesse restaurante...” As esmolas atrasam a revolução. Falsa caridade. Vaidade. É fácil jogar uma moeda e se sentir bondoso, filho de Deus, companheiro do sofredor. Anestesia social. Mas repetir isso pra mim mesmo não me deixa melhor. Pra falar a verdade, me sinto mais mesquinho ainda. Porra, uma moeda.

Alguma quadras abaixo, na entrada de um estacionamento, uma mulher observa triste um cone obstaculizando o portão: está lotado. Minha compaixão é muito grande, não distingue classe ou cor. Dirige-se dessa vez à mulher do carro. Sinto vontade de tirar o cone “Entre!, esqueceram de um lugar ali...” Mas ia ser pior. Medida paliativa. Pioram as coisas, depois. Imagino-a manobrando puta o carro e me xingando.

Medito sobre o ocorrido. Parábola marxista. Talvez minha moeda equivaleria a ação de tirar o cone do caminho. Mais pra frente as duas iam se fuder. O que fazer então? Nada? Me acusariam de conformista...”Todo o mal do mundo vem de nos importarmos uns com os outros,//quer para fazer bem, quer para fazer mal.” Alberto Caeiro. Ah quantos argumentos para ser mesquinho.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

indo

tive a chance de te falar o que sinto enquanto olhava em meus olhos. fechei os olhos e a boca, mas vivo cada segundo pensando em como fui estúpido ao fugir do que mais queria. na minha fuga levei tudo o que achava precioso, mas acabei deixando a minha esperança para trás. sem ter esperança de te ter novamente ao meu lado, vou levando uma vida errante. a cada erro me pergunto o que seria de minha vida se ainda estivesse contigo. todas as respostas que encontro são as lembranças confusas de você. lembrar dói, e faço de novos erros o meu analgésico corriqueiro.

a distância não é maior que os meus remorsos.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Incrível como os dias são iguais, mas não se repetem. Faço o mesmo caminho todos os dias para o trabalho. Encontro as mesmas pessoas. Dá até pra saber se estou atrasado, ou não, dependendo do ponto em que as vejo. E, cada uma, dentro de suas próprias singularidades e idiossincrasias são repetitivas. As pessoas, talvez, ao contrário dos dias, são diferentes, mas se repetem. Se repetem no sentido de que fulano e sicrano acabam por ser iguais. E, também, noutro de auto-repetição mesmo. Os mesmos gestos, as mesmas expressões, os mesmos jeitos, a mesma indiferença depois de tantos quase esbarrões e olhares acidentais, bom dias com sono e aquele meio-sorriso-sou-simpático-apenas-acabei-de-acordar.

Outro dia, por exemplo, eu estava com uma dor de barriga e as pessoas passavam por mim e não faziam Nada! Talvez minha cara não tenha expressado bem minha barriga (me reconheço como parte do todo), mas isso não as torna menos insensíveis e indiferentes ao sofrimento alheio.



Mas assim deve ser melhor, já pensou todo mundo se preocupando com você, que inferno seria? E pensando bem, ninguém pode ajudar alguém com dor de barriga. Talvez um remédio possa, ou se a pessoa for um santo fazedor de milagres. Mas dor de barriga é uma questão a ser resolvida ali, você e ela, sozinhos (parecida com a de cotovelo). Na verdade, eu acho até que me lembro, dia desses, de uma velhinha xingando um carro que espirrou água nela.

terça-feira, 7 de abril de 2009

eutanásia

odeio essa sensação de me sentir sendo sufocado por suas mãos. sua ausência, sua presença, me sufocam.
mate de uma vez.

a morte em si não deve ser pior que sentir-se decompondo em plena vida. essa sentimento de
que pedaços de mim vão indo como se nada os prendesse.

estou em coma. parado e quieto enquanto ouço a vida passando, pessoas vivendo e passando, o relógio rodando e o tempo passando.
para que fazer planos? para que venham e rasguem todos os meus mapas? não, não. não faço mais lanos. vou à deriva mesmo.

sempre quis conhecer esse mundo. agora que conheci, não gostei. sinto saudade daqueles tempos, mas sei que não posso voltar e esquecer.
quanto remorso.
coisas que deveria ter feito.
coisas que não deveria.
eutanásia.

segunda-feira, 9 de março de 2009

a outra

"Diferente que só ela", é o que todos diziam. Desde pequena começou a juntar a dúzia de cicatrizes que carrega com orgulho pelas aventuras em sua vida.

Vivia, muito embora sentisse que faltava alguma coisa. De quando em quando, cerrava os olhos obstinada em encontrar a paz de alguns segundos de solidão.

Em sua vida não se encaixavam frases populares, até que conheceu Carlos na montanha. Sujeito diferente e indiferente.

Daí pra frente, a história é conhecida - ela não apareceu no primeiro encontro,a primeira vez que a mentira torna-se uma desculpa, a segunda tentativa... Entediante para quem nunca viveu algo parecido; interessante para quem viveu não sentir-se o único.

E no dia da segunda tentativa de primeiro encontro, faziam-se prontos todos os detalhes exigidos pela moça: jantar, na casa dele, vinho. O segundo bolo que Carlos levou o fez sentir-se um kamikaze. Atirando-se de cabeça em algo como nunca fizera antes. Talvez não fosse tão indiferente.

Liga a moça, horas depois dele ter apagado as velas aos berros, já com algumas taças na cabeça. Diz ao rapaz inverdades esdrúxulas que ele aceita de pronto.

Precisava de esperança. Ou, para alguns, precisava voltar para a realidade.

O apaixonado chegava e a garota fugia. Carlos, sempre, com um largo pedaço de bolo na mão.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Temos vagas

Dia quente. Depois do almoço bate aquele soninho e o cochilo no sofá se torna inevitável. As vozes dos atores vão se embaralhando com as vezes em sua cabeça e de repente o nada que é interrompido com a campainha que berra com histeria.
O olho mágico que nada ajuda mostra a silhueta de três pessoas em frente à minha porta.
Giro a maçaneta.
_ Pois não?
Eram dois senhores e um jovem e diziam ter visto o anúncio dos cômodos que estavam para alugar em meu apê. Os tempos estão difíceis, amigo. Preciso dividir um pouco as despesas.
Os dois senhores estavam interessados em dividir o passado que estava vago. Era um passado espaçoso, arejado, mas não muito iluminado. Toparam os valores e foi assim que o sr. Remorso e o sr. Angústia vieram morar comigo.
O jovem perguntou se ainda teria um lugar para ele. Expliquei que meu futuro, local onde cuidava de meus negócios, estava ocupado pelo cara que cuida desses meus negócios atualmente. É um sujeito estranho chamado Destino. Tem um senso de humor peculiar, nunca entendo as piadas que ele faz.
Falei também que estava apertado financeiramente, mas não queria dividir meu presente, disse que poderia dormir no sofá até conseguir um lugar. Ali não teria lugar para ele.
_ Como você chama mesmo, meu jovem?
_ Esperança, senhor.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Viúva-Negra

“Triste que só ela”, é o que todos diziam. Ainda pequena tinha umas olheiras nefastas, como alguém que já passou por demasiadas tristezas na vida.
Vivia na fossa, muito embora nunca tivesse namorado. Encerrava-se em seu quarto como uma solitária obstinada.
Sendo assim, Maomé foi à montanha. Carlos era o nome dele. Vizinho também tímido, mas insistente.
Daí pra frente, a história é conhecida (e entediante) – primeiro encontro, namoro, noivado... O interessante é que veio a seguir.
No dia do casamento, faziam-se prontos todos os detalhes exigidos pela moça: a banda, o guardanapo, as flores. O bolo de casamento, então, parecia um World Trade Center que hora ou outra haveria de cair.
Chega a moça, horas antes da celebração, aos prantos e vestida de luto. Comunica ao noivo que não haveria mais casamento. Precisava de seu espaço. Ou, para alguns, precisava voltar para sua antiga infelicidade.
Os convidados chegavam e logo partiam, com um largo pedaço de bolo na mão.

Achados e Perdidos

Branco. Branco por todos os lados. Era só isso que ele via no hospital, um frio e patético branco. Como se aquela cor fosse capaz de trazer paz às angustias dos doentes e de suas famílias.
Na verdade, ele estava agora mais do que nunca desconsertado. Andava pelo hospital como se fosse um sonâmbulo perdido. O primo de segundo grau morrera às 10h. O sol já começava a se pôr, e o sonâmbulo ainda não entendia se estava na sala de cirurgia ou no elevador.
Não que o falecido fosse seu ente mais querido, mas o médico prometera que a cirurgia era rotineira. Desse modo, a morte surpreendeu a todos.
Fazia o chaveiro bambolear no seu dedo indicador. Era uma mania que tinha desde criança. Com a brincadeira, se perdia cada vez mais no labirinto do hospital.
Encontrou em uma das salas uma senhorinha pálida. Com um ar solitário e de intensa dor. Uma dor muda e sem esperança. Estava na UTI. Começava a entender. Entendeu quando viu o médico cabisbaixo olhar sua paciente.
Não havia ninguém em volta da doente. Nenhuma flor. Sobre a mesinha, nenhuma carta desejando melhoras.
Sentou-se na cadeira destinada aos acompanhantes. Deu um tapinha na mão da enferma e disse:
- Coragem!

Salão de Beleza

Aos 7 anos, parecia simplesmente que seus assuntos de criança não interessavam em nada à atribulada mãe. Com o pai no trabalho, sentia um vazio de carinho.
Quando um dia a mãe a convidou para passear, tudo mudou.Foram ao salão de beleza. Aquele ambiente parecia trazer às mulheres presentes uma sensação de liberdade para desabafar. Uma liberdade reforçada pelas horas e horas que demoravam os tratamentos capilares.
Foi uma grande surpresa. Nunca ouvira sua mãe falar tanto e tão alto. Um verdadeiro muro de lamentações.
Como uma jornalista investigativa, a menina passou a seguir a mãe nesses encontros. Observava entre os interesses da mãe, aquele que rendia maior tempo de conversa. Como sempre, “nos falta dinheiro”. “Precisamos de dinheiro”.
Daquela primeira visita, passaram-se anos. A diferença da menina era sensível. Ela era agora um pedaço da mãe. Um papagaio de pirata, pronta a repetir as palavras que a genitora proferisse. Sua relação com o pai mudara de maneira proporcionalmente inversa. Sentia um certo asco daquele homem, desde sempre incapaz de sustentar uma família classe média.
Já moça, a menina soube dos lábios do pai a notícia esperada: havia sido promovido, tudo iria mudar pra melhor. Antes de abraçar o pai, foi ao encontro da amiga de confidências, que estava no salão.
Ouviu espantada o descontentamento da mãe. Dizia ela que, na verdade, nunca haviam sido de fato pobres. A mãe ainda acrescentava:
- Ele que não me venha agora se atracar com uma interesseira.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Grandes passos, rumo a só Deus sabe o quê

Um programa muito engraçado chamado “Daily Show: Global Edition” fez uma comparação entre Bush e Obama.
Para o desconforto do público, a piada não era o antigo presidente. A base do humor era a semelhança dos discursos do velho e do novo presidente.
“Nós escolhemos a esperança ao invés do medo”
“Nós não vamos nos desculpar pelo nosso estilo de vida”
Qual frase pertence a qual presidente?
As duas são de Obama. De seu discurso de posse. Por incrível que pareça.
Seguindo o programa, pergunta-se a uma das jovens histéricas presentes na posse: “quais são as mudanças que você gostaria que fossem realizadas?” A resposta é um sonoro “humm...”
Não é de se impressionar. Dizem que para mudar, o primeiro passo é admitir o erro. É meio difícil começar uma transformação política, quando você não sabe nem o que está errado. E é lógico que quando um maníaco larga o poder, é um motivo e tanto pra se comemorar.
Talvez por isso haja tanto espetáculo e tanta esperança. Esperança, não confiança. São coisas muito diferentes.
Só o tempo irá dizer se Obama é merecedor do que lhe foi dado. Usando uma gíria do Texas, terra de Bush, tomara que o novo presidente não seja “muito chapéu pra pouco gado”.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Ricardo era muito corajoso. Mas as outras pessoas não sabiam disso. Não que ele fosse um exibido ou precisasse mostrar que era corajoso pra ganhar um lugar na roda-gigante que esmaga os perdedores. Não. Ricardo desejava mostrar que era corajoso para instigar outras pessoas a também cometerem atos corajosos. Desconfiava que o Medo estabelecera uma ditadura. O medo paralisava as pessoas; precisava cortar a cabeça da medusa e ele seria Perseu.

Quando assistia filmes com sua namorada, nas horas que o herói se arriscava para salvar a mocinha ele vibrava. Achava aquilo muito excitante. Uma vez até pensou em jogar a namorada na jaula de um leão só pra depois pular lá dentro, lutar com o animal e resgatar a dama. Mas conteve-se. Além do que o leão do zoológico era tão magro e anêmico que seria uma covardia bater nele. E isso: co-var-dia; Ricardo não admitia. Sentia ódio dos covardes.

Um dia, Ricardo passeava com sua namorada na praça. Já estava anoitecendo. Mas Ricardo não temia a noite. Sua namorada nem tanto corajosa, advertia para que voltassem. Mas ele queria dar mais uma volta na praça. Quando dobraram a esquina do velho Carvalho deram de cara com dois elementos. Ricardo empalideceu. Um deles puxou uma arma. As pernas de Ricardo bambearam. Cala boca e passa a bolsa vadia! Antes do dia de va-dia, Ricardo arrancara a bolsa e dera aos bandidos. Os dois riram do pânico do menino e saíram tranquilamente. Olha aqui sua vagabunda, se você contar alguma coisa do que houve aqui, eu te mato, ouviu? M-A-T-O. Ricardo era um covarde. Mas as outras pessoas não sabiam disso...

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

fANAtismo e caps lock

minh’alma, de sonhAr-te, anda PERDIDA
meus olhos andam cegos de te ver!
NÃO és seQUER razão de meu viVER,
pois que tu és já toda A minha VIDA!

não vejo nada assim ENLOUQUECIDA…
passo NO mundo, meu AMOR, A ler
no misterioso livro do teu SER
A MESMA história tANTAs vezes lida!

“tudo no mundo é frágil, tudo PASSA…”
quando me dizEM isto, toda a GRAÇA
dumA BOCA divina fala EM MIM!

e, OLHOS postos Em ti, vivo de RASTROS:
“ah! podem voar MUNDOS, morrEr ASTROS,
que TU és como dEUs: princípio E FIM!…”


com florbela espanca

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Sabor pela angústia

Saiu de casa agasalhado para o frio da madrugada, com a seriedade de quem vai a um enterro. Recostou-se na porta da frente e acendeu um cigarro.
Era muito bem letrado, por isso mesmo pensava agora em vários nomes pra si mesmo: vil, desprezível, inconseqüente, irresponsável. Pensava isso apenas para impressionar a si mesmo, numa tentativa patética de dissuadir-se daquilo que já havia decidido.
(Um cidadão exemplar, que pagava seus impostos com uma exatidão admirável. Nenhum desleixo com a mulher ou com o menino pequeno. Correto até o último fio de cabelo. No mais, experimentava às vezes um escape através culpa - deixava o gás ligado, prevendo a casa e os móveis em chamas. Ciente do que fazia, derrubava a porcelana chinesa ou se atrasava para o jantar. Enfim, um paciente em potencial para o Dr. Freud).
Cigarro terminado, ele reergueu a mochila que levava consigo. Olhou pra trás na busca de um escrúpulo. Não veio nenhum.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Gota D'Água

Marta terminava de preparar o almoço. Colocou os pratos na mesa, enxugou a testa com o avental. Pegou no armário os comprimidos, já eram quatro. Chamou os meninos e foi buscar o pai na sala. Macarrão à Bolognesa, agrados ao seu Onofre. Depois de uma manhã exaustiva - buscar o pai no hospital e arrumar a casa -, finalmente o almoço. Antes, rezaram. Vô me passa aquele copo, seu Onofre levantou os olhos do prato e parou por alguns segundos com o copo na mão: Quem são esses dois?. Marta desabou em soluços e lágrimas. O Alzheimer fora diagnosticado há poucas semanas, embora avançado.

Os lapsos de memória eram cada vez mais freqüentes, mas nunca ocorrera esquecer dos próprios netos. À tarde, recuperada, conversou mais uma vez com os filhos e explicou o vovô está doente e às vezes acontece sabem...temos de ajudá-lo. Na sala, Marta tinha colocado um cd de bossa nova, paixão de seu Onofre. Fazia o possível pra amenizar aquela condição.

Marta sonhara a vida toda com um casamento perfeito. Como de seus pais: afastados apenas por Deus (e momentaneamente). Lembrava das fotos que sua mãe lhe mostrava, linda com aquele vestido branco: exibindo sorridente e orgulhosa a barriga de quatro meses. A mãe contava-lhe como conhecera seu Onofre, gabava-se dizendo que ele não resistira a seu charme. Seu pai me confessava ser o mais feliz dos homens. Contava à filha que depois, com os anos, as coisas mudavam com os casais, não era mais aquela paixão ardente, de corpo, mas um amor maduro, de alma. Por isso que seu pai hoje é meio quieto. Marta passava as mãos sobre as fotos se imaginando no lugar, já vestira o vestido da mãe. Lia romances românticos, não suportava os realistas.
Conheceu Ângelo quando tinha 22, paixão arrebatadora. Largou a faculdade, vontade própria; não que quisesse ser Amélia, mas os estudos não lhe agradavam. Dois anos depois, casou. Tiveram Pedro e João. Completariam catorze anos de casamento quando descobriu a traição. Divorciou-se.

A mãe morrera dois anos antes da separação, aos 58, câncer no colo do útero. Foi o primeiro golpe na vida de Marta. Sustentou-se nos pilares do casamento, que mais tarde ruíram. Há pouco o Alzheimer do pai. Como se não bastasse tanta desgraça, Marta entrava nos quarenta: a menopausa. Tirava forças do além (e dos remédios) pra cuidar dos filhos e, agora, do pai.

A doença piorava assustadoramente. Os períodos de lucidez foram escasseando-se e os delírios cada vez mais preocupantes. Os remédios combatiam a degeneração da memória, mas pareciam colocar o velho na corda bamba entre a sanidade e a loucura. Marta virara enfermeira do pai, ficava boa parte do dia com ele. Sobrevivia penosamente da pensão dos filhos.
Era música quase todos os dias, Onofre não gostava muito de televisão e Marta pensava que a música poderia ajudá-lo a relembrar das coisas. Uma tarde, eles estavam na sala e começou a tocar “Minha Namorada”. Marta percebeu um murmúrio do pai. Aproximou-se o quê pai? , ele repetia, na terceira, ela pode distinguir: Helena . Helena? disse em voz alta e despertou o pai do transe. Marta ficou intrigada mas não deu maior importância.

Passados alguns dias, encontrou Dona Rita no supermercado, velha enxerida e fofoqueira, antiga amiga dos pais. Perguntou sobre seu Onofre, mentiu respondendo estar melhor. Marta lembrou da tal Helena, você sabe de alguma helena conhecida de papai? Percebeu que a velha se perturbou e tentou disfarçar: Não, não sei, não. Três "nãos" seguidos, suspeito...mas mesmo assim, não insistiu.

Na mesma semana, o pai teve um surto e repetia incessantemente aquele nome. Marta resolveu esclarecer aquilo. Depois que Onofre adormecera com os remédios foi até a casa de Dona Rita. Indagou novamente sobre a tal sem contar os acessos do pai. Percebeu a negligência da outra, mas sabia que estava louca pra contar. Insistiu mais um pouco e pronto, Dona Rita despejou quem era a tal de Helena.

- Nos tempos de colégio, seu pai tinha uma namorada pela qual era tremendamente apaixonado: Helena. Mas, ele sempre foi muito ciumento, uma noite, num baile, os dois brigaram feio; Helena também era apaixonada por Onofre, mas o ciúme era asfixiante. Nessa noite, Onofre acabou saindo com Ana, pra dar o troco, ou melhor para provocar a Helena. Foi apenas uma noite. Depois disso, o antigo casal 20 voltou e diziam que se preparavam até para marcar a data. Algumas semanas depois, sua mãe apareceu grávida. Seu pai teve de desmanchar o noivado e a contragosto casar-se com sua mãe.

Foi a gota d´agua. Marta que repudiava traição era ela mesma fruto de uma. O casamente de seus pais era uma mentira e ela a vida toda aspirou a essa mentira. Agora, para Marta, as coisas se esclareciam, aquele almoço nos quais ele não reconhecera os próprios netos não fora por causa do Alzheimer, ele não os reconhecia como netos mesmo, filhos de uma filha indesejada, uma filha fruto do acaso, pior: da tra-i-ção. Se sentia uma filha maldita. “O bebê de rosemary”, mas a própria rosemary era má.

Na volta pra casa, passou numa farmácia e comprou o cianureto, gatos da rua me perturbam mentiu ao farmacêutico. Chegou em casa e terminou a sopa que preparara para o jantar. Três pratos na mesa, adicionou o cianureto nos três. Chamou os filhos para o jantar. Quando levava a primeira colherada a boca, Mamãe! Que foi Pedro?! Disse com a voz trêmula A oração...Os três rezaram e jantaram.

domingo, 11 de janeiro de 2009

Sobre israelenses e palestinos

“O único direito que o governo de Israel nos deixa é o de morrer. E, agora, diante dos homens-bombas, quer nos privar também do direito de escolher a hora e o modo de morrer.”

sábado, 10 de janeiro de 2009

As insanidades de Papai

Meu pai era um médico com difícil acesso à alma infantil. Certa vez ele me ensinou:
- Consegue ver a cavidade craniana no desenho? É ali que fica a inteligência das pessoas. No caso do seu tio, o Tico e o Teco que moravam ali brigaram.
Foi assim que ele explicou a internação de um parente em um sanatório. (Tio Léo, mais tarde apelidado maldosamente de Tio Leléo). O fato é que meu tio, depois de alguns desapontamentos financeiros e amorosos, havia surtado.
Enfim, o que vem ao caso é meu pai e a metáfora dele. Aquela imagem do cérebro, povoado de pensamentos, nunca saiu da minha cabeça.
Durante muitos anos, acreditei na história do Tico e Teco. Mais tarde, numa fase mais Pink Floyd, imaginava minha alma perdida nadando no aquário da minha cabeça.
A essas, seguiram-se outras teorias sobre minha mente, de acordo com meu momento na vida.
Hoje, velho e pervertido, vejo a cabeça como uma residência de ilusões, um palco de cabaré. As dançarinas de can-can entreteram meu tio por um tempo, depois deram-se as mãos, agradeceram e foram embora.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

minhas nuvens

Quando era pequeno, eu gostava de deitar no quintal de casa durante as tardes e ficar por lá, vendo as nuvens espalhadas pelo céu azul. Não tinha aquela pretensão de ficar procurando animais ou outras formas ali, simplesmente ficava lá com o corpo estirado no chão, esperando o avião que passava - fazendo um barulho que eu não entendia mesmo estando tão longe - sumir em algum momento.

Os anos passaram e já não deito no quintal, a não ser que por algum motivo eu caía. Não tenho mais o tempo pra ficar vendo as nuvens do céu - tempo, tempo, tempo, tempo, já escrevi sobre isso, mas meu próximo post será sobre ele. Nesse processo de ficar velho a gente vai esquecendo dessas coisas, hoje só olho pro céu pra saber se vai chover ou pra reclamar do calor.

Mas sabe aquelas coisas que acontecem e você tem aquele 'plim!'?

Alguns dias atrás um passáro passou muito perto da minha cabeça e subiu para o céu. Depois do susto, eu o segui com os olhos enquanto começava a resmungar quando: óóó! que céu bonito!

Parei e fiquei ali naquela calçada. Vendo o céu azul com aquelas nuvens indo e umas nuvens mais altas vindo da direção contrária. Devo ter ficado ali por pouco tempo, só o suficiente para alguém perceber aquilo e rir.

Mas foi boa a sensação, voltar tantos anos em tão poucos segundos.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

A Lagartixa Selvagem

Mais um árduo dia chegava ao fim. Era tomar um bom banho e dormir. Acendi a luz do banheiro e me aproximei do box, foi quando percebi uma estranha movimentação lá dentro. Uma lagartixa percorria todo o perímetro retangular correndo e tentando escalar as paredes, sem sucesso. Deve ser uma lagartixa velha, pobrezinha, suas patinhas perderam a aderência e não consegue mais subir nas paredes, pensei. Fiquei com pena, além do que a pobre se assustara tanto comigo que estava ofegante de tanto correr, fiquei com medo de que seu coraçãozinho não agüentasse e tivesse um piripaque, não suportaria conviver com esse fardo, ter matado a coitada. Tentei acalmá-la mas ela parecia ficar cada vez mais nervosa, me olhava com aqueles olhinhos brilhantes e vesgos em cima da cabeça que davam mais pena. Entrei no box pra tentar ajudá-la com uma pazinha-maca afim de levá-la de volta ao seu habitat. Foi quando ela revelou sua verdadeira natureza. Mal entrei, ela avançou sobre mim mostrando as garras e as presas sedentas de carne. Num reflexo, pulei fora do box e fechei a porta de vidro, que ficou marcada pela violência das garras e presas.

Recuperado do susto, encarei-a através do vidro. Ela dava voltas inquieta. Asquerosa. Foi então que minha natureza humana mostrou porquê está no topo da cadeia evolutiva: corri pegar uma vassoura. De arma em punho entrei no banheiro tal um cruzado na conquista do meu espaço sagrado invadido por um réptil pegajoso. Mas ela não estava mas lá. Que estranho. Porém, não me precipitei. Peguei um balde com água e joguei lá dentro. Era uma armadilha! Ela havia se escondido num ponto cego do box. Quando viu a onda de água em sua direção subiu na parede. Eu sabia que era fingimento, ela não era velha coisa nenhuma...Quando viu a vassoura assustou-se. As vassouras são as arquiinimigas das lagartixas. Das baratas, também. Ela correu até o vitrô. Prensei-a na parede e ela caiu. Quando se viu acuada atacou-me num tudo ou nada. Confesso que recuei (mas apenas um passo). Ela ganhou terreno e pode preparar a fuga. Deixei que escapasse num ato misericordioso.