quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Gota D'Água

Marta terminava de preparar o almoço. Colocou os pratos na mesa, enxugou a testa com o avental. Pegou no armário os comprimidos, já eram quatro. Chamou os meninos e foi buscar o pai na sala. Macarrão à Bolognesa, agrados ao seu Onofre. Depois de uma manhã exaustiva - buscar o pai no hospital e arrumar a casa -, finalmente o almoço. Antes, rezaram. Vô me passa aquele copo, seu Onofre levantou os olhos do prato e parou por alguns segundos com o copo na mão: Quem são esses dois?. Marta desabou em soluços e lágrimas. O Alzheimer fora diagnosticado há poucas semanas, embora avançado.

Os lapsos de memória eram cada vez mais freqüentes, mas nunca ocorrera esquecer dos próprios netos. À tarde, recuperada, conversou mais uma vez com os filhos e explicou o vovô está doente e às vezes acontece sabem...temos de ajudá-lo. Na sala, Marta tinha colocado um cd de bossa nova, paixão de seu Onofre. Fazia o possível pra amenizar aquela condição.

Marta sonhara a vida toda com um casamento perfeito. Como de seus pais: afastados apenas por Deus (e momentaneamente). Lembrava das fotos que sua mãe lhe mostrava, linda com aquele vestido branco: exibindo sorridente e orgulhosa a barriga de quatro meses. A mãe contava-lhe como conhecera seu Onofre, gabava-se dizendo que ele não resistira a seu charme. Seu pai me confessava ser o mais feliz dos homens. Contava à filha que depois, com os anos, as coisas mudavam com os casais, não era mais aquela paixão ardente, de corpo, mas um amor maduro, de alma. Por isso que seu pai hoje é meio quieto. Marta passava as mãos sobre as fotos se imaginando no lugar, já vestira o vestido da mãe. Lia romances românticos, não suportava os realistas.
Conheceu Ângelo quando tinha 22, paixão arrebatadora. Largou a faculdade, vontade própria; não que quisesse ser Amélia, mas os estudos não lhe agradavam. Dois anos depois, casou. Tiveram Pedro e João. Completariam catorze anos de casamento quando descobriu a traição. Divorciou-se.

A mãe morrera dois anos antes da separação, aos 58, câncer no colo do útero. Foi o primeiro golpe na vida de Marta. Sustentou-se nos pilares do casamento, que mais tarde ruíram. Há pouco o Alzheimer do pai. Como se não bastasse tanta desgraça, Marta entrava nos quarenta: a menopausa. Tirava forças do além (e dos remédios) pra cuidar dos filhos e, agora, do pai.

A doença piorava assustadoramente. Os períodos de lucidez foram escasseando-se e os delírios cada vez mais preocupantes. Os remédios combatiam a degeneração da memória, mas pareciam colocar o velho na corda bamba entre a sanidade e a loucura. Marta virara enfermeira do pai, ficava boa parte do dia com ele. Sobrevivia penosamente da pensão dos filhos.
Era música quase todos os dias, Onofre não gostava muito de televisão e Marta pensava que a música poderia ajudá-lo a relembrar das coisas. Uma tarde, eles estavam na sala e começou a tocar “Minha Namorada”. Marta percebeu um murmúrio do pai. Aproximou-se o quê pai? , ele repetia, na terceira, ela pode distinguir: Helena . Helena? disse em voz alta e despertou o pai do transe. Marta ficou intrigada mas não deu maior importância.

Passados alguns dias, encontrou Dona Rita no supermercado, velha enxerida e fofoqueira, antiga amiga dos pais. Perguntou sobre seu Onofre, mentiu respondendo estar melhor. Marta lembrou da tal Helena, você sabe de alguma helena conhecida de papai? Percebeu que a velha se perturbou e tentou disfarçar: Não, não sei, não. Três "nãos" seguidos, suspeito...mas mesmo assim, não insistiu.

Na mesma semana, o pai teve um surto e repetia incessantemente aquele nome. Marta resolveu esclarecer aquilo. Depois que Onofre adormecera com os remédios foi até a casa de Dona Rita. Indagou novamente sobre a tal sem contar os acessos do pai. Percebeu a negligência da outra, mas sabia que estava louca pra contar. Insistiu mais um pouco e pronto, Dona Rita despejou quem era a tal de Helena.

- Nos tempos de colégio, seu pai tinha uma namorada pela qual era tremendamente apaixonado: Helena. Mas, ele sempre foi muito ciumento, uma noite, num baile, os dois brigaram feio; Helena também era apaixonada por Onofre, mas o ciúme era asfixiante. Nessa noite, Onofre acabou saindo com Ana, pra dar o troco, ou melhor para provocar a Helena. Foi apenas uma noite. Depois disso, o antigo casal 20 voltou e diziam que se preparavam até para marcar a data. Algumas semanas depois, sua mãe apareceu grávida. Seu pai teve de desmanchar o noivado e a contragosto casar-se com sua mãe.

Foi a gota d´agua. Marta que repudiava traição era ela mesma fruto de uma. O casamente de seus pais era uma mentira e ela a vida toda aspirou a essa mentira. Agora, para Marta, as coisas se esclareciam, aquele almoço nos quais ele não reconhecera os próprios netos não fora por causa do Alzheimer, ele não os reconhecia como netos mesmo, filhos de uma filha indesejada, uma filha fruto do acaso, pior: da tra-i-ção. Se sentia uma filha maldita. “O bebê de rosemary”, mas a própria rosemary era má.

Na volta pra casa, passou numa farmácia e comprou o cianureto, gatos da rua me perturbam mentiu ao farmacêutico. Chegou em casa e terminou a sopa que preparara para o jantar. Três pratos na mesa, adicionou o cianureto nos três. Chamou os filhos para o jantar. Quando levava a primeira colherada a boca, Mamãe! Que foi Pedro?! Disse com a voz trêmula A oração...Os três rezaram e jantaram.

2 comentários:

grazi shimizu disse...

estou chocada [e maravilhada];

Anônimo disse...

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