quinta-feira, 20 de novembro de 2008

O jovem doutor

Desde os cinco, o pai sentenciava: Há de ser médico. E o melhor!
Uma vez, no volta de uma viagem, a família deparou com um acidente na estrada. Advertiram-no: Fique no carro! Foi o mesmo que empurrá-lo pra fora. Entre paramédicos luzes gemidos curiosos e sangue se aproximou de uma das vítimas em pânico e com seu olhar doce, de quem não sabia o que acontecia: tranquilizou-a. A partir de então, a vocação.

Do desejo fez-se verbo. Doutor! os pais se orgulhavam a terceiros. Do verbo fez-se imagem. No quarto do menino a cama lembrava uma maca, meio tenebroso mas ele gostava, até a lâmpada ganhou a decoração daquelas de sala de cirurgia; Na tv assistia a outros, mas gostava mesmo era dos seriados médicos. A imagem fez-se profecia. Cresceu entre bonecos e livros de biologia. Brincava, naturalmente, mas de médico, sem malícia. Da profecia fez-se obsessão.

Aos doze, perdeu o avô. Doença congênita no pâncreas, mas ainda desconhecida. Desconhecida...inquietou ainda mais o espírito médico do jovem. Congênita, hereditária. Mamãe certamente sofre ou sofrerá também da moléstia.

Uma noite, serviu um chá para a mãe com uma dose cavalar de calmantes. Esperou o sono. Embebeu uma pano com álcool e amarrou na boca da mãe. Com uma faca do churrasco fez uma abertura abaixo dos seios. A mulher sentindo a carne rasgar despertou gritando, ao tomar ar tragou o álcool do pano e desmaiou novamente. Tudo planejado. Localizou o pâncreas e extirpou-o. Colocou numa bandeja e levou o órgão ao quarto para exáminá-lo no microscópio do kit da coleção nas bancas.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Recurso

O meu mundo - ou pelo menos o meu atual mundo, praticamente limitado a duas ou três avenidas e suas proximidades - está infestado de juízes.

O que você está comendo? O que você está vestindo? O que ouve? o que vê? Com quem anda? Quem odeia?

Centenas de dedos apontando para você e dando seu veredicto.

Só faço um pergunta: por que te importa?

Na verdade faço mais uma, pra que esticar tanto o pescoço pra saber algo sobre a vida alheia? Se a curiosidade te sufoca, vá, olhe, mas cale essa boca.

Deixe essa personagem dentro do gaveta da próxima vez que sair. Todos sabem que você canta Araketu embaixo do chuveiro quando tira a camiseta daquela banda b do cenário sueco dos anos 70.

Quanto mais você vive assim, mais é necessário essa carapaça que te proteje do quem vem de fora, mas te machuca com o lado de dentro.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Ao lado

Atravessou triste o corredor e entrou no apartamento. Tomou coragem e começou a escrever:
“Eu vou sentir saudade de tudo. É muito estranho, mas é verdade.
Por exemplo, as voltas pra casa. Eu sei que eu ia pro trabalho reclamado da rotina. Mas no final do dia eu queria saber que você iria estar aqui do lado. E você sempre estava. Eu vou sentir saudade da certeza.
Saudade também da incerteza, por que não?
Eu podia até não pensar em você. Mas daí você aparecia. Depois disso, o dia não era mais o mesmo. Eu passava dias pensando quando você ia aparecer de novo. Eu vou sentir saudade de torcer pra que você aparecesse.
Você completava o meu dia como ninguém.
É o fim que dá graças às coisas. Realmente, agora eu vejo que você era importante pra mim. As pessoas não são como você. Será difícil achar outra igual. Até lá, eu vou ter que sentir saudade.
Saudade até dos pequenos momentos. Os atrasos. Eu trancava meu apartamento e você o seu. Só nesses atrasos é que eu dividia o elevador com você.
Saudade de você moça. Queria ter sabido seu nome. Queria você no corredor pra me dar mais um ‘oi’. O seu ‘oi’ nunca me julgou, minha grande amiga”
Abriu a porta e deixou o bilhete debaixo da porta vizinha. Junto com as contas que o caminhão da mudança esqueceu de levar.