quarta-feira, 3 de setembro de 2008

A pedra e a porta I

Era uma rua do centro. Muitas pernas passando, olhos a espiar manchetes e aqueles cheiros de pão, café e baunilha que saíam da padaria. Devido a sua baixa estatura, não conseguia desfrutar dessa atmosfera as notícias, mas não era mal informada: as pessoas às vezes liam, espantadas, algumas delas e não foi difícil descobrir uma regularidade no que ocorria no mundo animal, no humano, sobretudo. O reino mineral era mais parado, mas a ironia só vale aos olhares desatentos dos que se moviam de um lado para outro sem chegar a lugar nenhum. A reflexão é dela, da pedra que vivia na rua do centro, a suspirar o perfume da padaria, se distrair com os pés - que às vezes a faziam mudar de ponto de vista -, mas sem distrair-se de onde estava o seu amor: do outro lado da rua.

Mesmo sendo caminho obrigatório para muitos, não recebia a atenção devida. Pelo contrário, às vezes tratavam-na grosseiramente, com pontapés e empurrões, batidas exageradas e até xingamentos quando ao girar sua cintura não se abria. Ficava quase na calçada, separada apenas por um degrau / batente; era madeira nobre, mas exposta ao tempo foi perdendo a majestade (exterior). Seus vincos contavam uma vida triste: desde a extração ilegal que separou sua família até os destratos humanos do dia-a-dia. O amor também não tinha sido gentil com ela: apaixonou-se uma vez pela lixeira do mesmo prédio que fazia parte, mas esta só a procurava quando suja e fedida, no resto do dia se exibia garbosa aos olhares atrevidos. Há pouco, a porta percebera os galanteios de uma pedra do outro lado da rua.

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