sábado, 6 de setembro de 2008

A pedra e a porta II

Era manhã. Da padaria, o cheiro de café pão e baunilha misturava-se a outro, viscoso e amargo. Estava agitada. Ouviam-se gritos e barulhos secos e surdos. De repente, um homem pingando sangue e meio encurvado rompe de dentro correndo. Esbarra nos jornais da banca e termina o banho de sangue. Levanta-se e sai em disparada novamente. No meio da correria desafogada, chuta uma pedra. Ela atravessa a rua num vôo insólito entre carros e pedestres e pânico e acerta uma porta na calçada oposta. Foi o encontro. A porta ficou estarrecida com o beijo roubado, que acabara de fazer outra marca em sua superfície – e outra por dentro. Mas esta contaria uma história de amor bonita. O casal não acreditava na ironia do destino. Estavam naquela fase alter-goísta, só tinham olhos um para o outro (metáfora da metáfora, uma vez que pedras e portas são seres desprovidos de olhos, mas nem por isso deixam de ver o que acontece em derredor). Não se importavam de seu amor ser fruto de sangue derramado. Assim acontecia nos grandes romances. Pelo contrário, até sentiam-se envaidecidos, com o prenúncio de uma grande história de amor.

A pedra fazia as juras de amor mais doces e a porta as ouvia toda derretida. A vida agora era boa e não precisava de explicações. Bastavam as sensações.

Quando a tarde o lugar tranqüilizou-se, os dois fizeram planos e marcaram a data. O sol ainda arrastava seus últimos raios a iluminar o casal. Foi quando outro de repente aconteceu. De supetão, num movimento brusco, a porta se abriu. Os dois se tocaram com tamanha intensidade que nenhum poeta seria capaz de cantar o gozo de ambos. Mas quando recuperadas as consciências, viram-se separados. A pedra fora jogada para a calçada perto da lixeira. O destino parecia vir cobrar pelo feliz acaso da manha. De dentro do prédio, uma moça sai eufórica para cair nos braços de seu namorado.

A noite já ia alta. A pedra amargava a situação. A porta, chorava. Vendo isso, a lixeira principiou, como quem não queria nada, uma conversa com a pedra: “Comigo também foi assim. Me cuidei me limpei me humilhei. Ela fingiu amar. Comprei anel, botei no papel. Mas quando me descobriu pobre e suja: me largou.”

Nenhum comentário: