sábado, 26 de julho de 2008

Vincente (1/?)

Já era noite avançada e Vincente ainda não conseguira dormir. Era um daqueles momentos em que você não quer pensar em nada: paradoxalmente, pensa eu tudo. Lembrou-se do que uma atriz dissera uma vez: “Se pudesse vender todos os pensamentos que tenho no chuveiro, ficaria rica.” Era, mais ou menos, assim. Às vezes, antes do sono, realizava raciocínios fantásticos, maquinava planos que poderiam acabar com a fome no mundo, descobria meios para pôr fim a violência, apertava ao peito mais humanidades do que Cristo, fazia em segredo filosofias que nenhum Kant escreveu. Lera certa vez: “Se meu travesseiro se transformasse numa impressora...”. Seria uma solução.

Acordou atrasado. Precisava de uma hora entre o despertar e o seu trabalho; tinha uns quarenta minutos. O banho teria de ficar pra noite, estava frio mesmo. Colocou a água pra ferver: o café era imprescindível. Deixar de tomá-lo significava sacrificar um dia inteiro, perambulando por aí feito um zumbi entre o sono e a vigília, sem se sentir realmente acordado. Café com pão e manteiga, leite, também era preciso cálcio. Mais café. Cigarro na sacada. Agora estava preparado. Faltava apenas escovar os dentes. Banheiro, olhada no espelho, armário, escova, água, pasta. Pasta! O tubo todo retorcido anunciava seu companheiro da manhã: o mau-hálito. No meio do caminho podia até comprar uma balinha ou um chiclete, mas o pouco de pasta que restava não disfarçou muito bem o amarelo do café e a lembrança do cigarro deixava vestígios, quanto a isso sem grandes lamentos, não seria o último mesmo.

A caminho do trabalho, uma parada na banca pra balinha. Parada de emergência. Se bem que hoje não era ele mesmo quem iria abrir a biblioteca; tudo bem chegar um pouco atrasado. Olho no balcão a escolher...uma olhada inconsciente nas revistas...Acabara de chegar sua revista semanal! O dinheiro só dava pra uma ou outra, escolha de sofia: o bafo ou a revista. “A política, economia e cultura são mais importantes que um leve mau-hálito. Não cederei ao apelo do marketing incutido em minha cabeça desde criança que as pessoas com mau-hálito são desprezíveis, devendo todas se entupirem de gomas e balas.” Pensou com Jiminy Cricket, num impulso comunista. A revista.

Chegou no trabalho. Vincente era guarda-livros na biblioteca municipal. Sabia que não era grande coisa, mas os livros davam um apoio. Cumpridas as burocracias, desculpas pelo atraso pedidas: ao trabalho. No dia anterior, apesar de ter ficado até tarde, não tinha conseguido arrumar uns arquivos. Retomou o trabalho.

Apesar do volume dos papéis o trabalho estava tranqüilo. Disfarçava bem seu problema (o bafo), quando as pessoas perguntavam algo, Vincente respondia meio de lado, dava pra contornar. Já era quase hora do almoço também, dava pra passar numa farmácia e resolver (a escova trazia consigo pra depois do almoço). De repente entra na biblioteca uma amiga sua. Uma daquelas do tempo colegial. Bonita. Pela qual guardava uma sensação bandeiriana de: aquela que poderia ter sido e que não foi.

Eram bem amigos no tempo de escola, mas depois do último ano, vestibular e cada um vai pra um lado, não se viam quase nunca. (Vincente não se dera bem nas provas, mas também não ligava muito pra faculdade, deixou os pais e veio morar sozinho na capital na promessa de fazer cursinho e trabalhar. Trabalhar ele cumpriu, mas o cursinho adiava. Já Débora fazia letras.) Vincente já sentiu o peso da mão de Murphy na situação: nunca via a menina, quando via não podia falar com ela direito (o bafo). Ela muito sorridente veio falar com ele, perguntou e contou as novidades, conversa vai e conversa vem (o pobre sempre a falar pra baixo, ou com a mão na frente da boca disfarçando...).
- Ô Vincente, cê sabe se tem aí o Cheiro do Ralo?
- Quê? Quê ralo? Será que ela ta tirando sarro por causa do bafo? Pensou.
- O Cheiro do Ralo, Vincente.
- O Débora, não tô sentindo cheiro nenhum não.
A menina riu:
- Cê tá parecendo o cara do filme: “Esse cheiro não é meu não. É do ralo, olha.” Disse imitando a voz de Lourenço (o protagonista).
Vincente deu um sorriso - amarelo:
- Ah tá. Entendi. O filme, sei.
- Então, é baseado num livro. O autor é o cara que faz o segurança, sabe? Já assistiu?
Ele já tinha assistido, mas disse que não, queria mudar de assunto.
- Ah não acredito. Se você quiser a gente pode assistir. To com ele em casa ainda. Já assisti ontem mas assisto de novo, é bem legal. O Selton Mello tá muito fera. Faz tempo que a gente não conversa e eu também não agüento mais minha mãe perguntar de você ! Os dois riram, Vincente meio sem graça, ela, risada sincera.

Os dois conversaram mais um pouco, a menina até se esqueceu do livro, e combinaram o filme no apartamento dela à noite. Ela não morava longe dele mesmo, eram uns vinte minutos a pé.

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