quarta-feira, 16 de julho de 2008

Retratos

I

Estava comendo alguma coisa num lugar por aí, por esses dias. Já era noite. Entrou um daqueles meninos que vendem coisas. Era bem magro e descalço, meio raquítico e anêmico, olhos fundos: deve ter faltado alguma vitamina essencial para seu desenvolvimento pleno. Olhou às pessoas ao redor. Devia estar cansado, nem foi de mesa em mesa oferecer o que vendia. Sentou-se perto de mim, perguntou: “Compra um moço?” me mostrando os imãs de geladeira. Reparei, eles tinham formas de frutas, com carinhas, braços e pernas. Alguns até sorriam. Outros, talvez por descuido do fabricante, ficaram meio sem expressão, sem graça. Enquanto a maioria se exibia de frente e sorrisos, um estava de costas. Esse era esquisito; a maioria pelo menos lembrava a fruta que representavam, esse não, não tinha uma forma definida. Ás vezes parecia uma mistura de todos; outras nenhum deles. Peguei-o na mão. A cabeça pendia pra baixo, o olhar mirava um ponto qualquer, o sorriso dava um ar mais melancólico ainda, como se sorrisse por não saber o que mais fazer. Era o único que sabia o que acontecia. Comprei-o.

“Uma parte de mim
é todo mundo;
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.”

Ferreira Gullar

II

Outra dia, andava pela calçada e logo a frente reparei um rapaz revirando uma lixeira. Era um daqueles catadores, separava o lixo para vender pra reciclagem talvez. Passa um carro, o vidro desce (vidro elétrico), escuto a voz da mulher: “Viu, vê se não deixa tudo bagunçado quando você terminar. Não quero lixo espalhado por aí.” O rapaz abaixa a cerviz: resignado e obediente.


Quadro

Se soubesse o que fazer
eu já o teria feito.
Se hoje espero, não é por resignação ou conformismo;
é porque acredito.
No meu silêncio não há lamúrias ou abafamentos.
Mastigo tudo lentamente; na garganta engasgada
o doce sabor do fel mistura-se ao sangue
dessas feridas.
Sinto próximo o momento do escarro.


Olhos fitos na parede nua,
a imaginar a moldura dos crimes que cometerei
pra aliviar toda essa cólera dentro de mim e de outros.
E os pendurar na parede a fim de aviso
aos que virão.

2 comentários:

grazi shimizu disse...

tipo assim: retratos que não precisam de imagens. não é qualquer um que consegue fazer.

e eu posso enxergar cada retrato desses descritos.

Paula Bastos disse...

De tudo o que você já escreveu, este texto é sem dúvida o melhor. Quando você começou a retratar o imã diferente, eu já pensei: ele o comprou! Eu também teria comprado esse (digo pela descrição).
Gostei muito do que li e me fez refletir ainda mais sobre coisas que tenho visto e que têm me feito pensar muito.
O poema final é ótimo...sinal de que essa cabeça tem pensado muito!